Convivendo a quase três décadas no movimento espírita, volta e meia nos deparamos com situações e posturas um tanto equivocadas, as quais se já não são mais surpreendentes, ainda nos motivam à acurada reflexão. Uma delas diz respeito ao discurso de tribuna acerca da realidade do Mundo Espiritual. Alguns expositores, talvez, maravilhados ante certos relatos contidos em livros psicografados (nem todos submetidos, é bem verdade, ao cotejo com os princípios fundamentais e as orientações contidas nas obras básicas), passam a contar para a plateia “como é” a vida na espiritualidade, descrevendo, até, cenários e contingências “fantásticas” (!), frágeis ante o conteúdo essencial da Doutrina Espírita. Há “modernos" aparelhos e instrumentos, veículos de transporte, alimentos, remédios e outros recursos, que mais parecem a continuidade dos nossos cenários físicos, mesclados com alguns elementos de obras de ficção científica, como os célebres livros de Júlio Verne.

Em paralelo, há muitos espíritas que se julgam mais adiantados que os demais, assumindo atitudes como já estivessem vivendo no Plano Espiritual, tal o “desprendimento” das coisas materiais, que aparentam ter. Ou, então, agem, nas mínimas situações da vida física, sem dar tanta importância àquilo que constitui necessidade para o corpo, morada do ser encarnado. Espiritualização em nenhum momento significa a exclusão, a ojeriza, a abdicação dos meios materiaisferramentas ou instrumentos colocados à disposição do homem para o progresso e bem-estar. Há uma aparente e descabida confusão entre uso e abuso, portanto, ou entre os conhecidos elementos do texto evangélico, necessário e supérfluo. Você já se imaginou morando numa residência bem rústica, sem energia elétrica, em zona rural? Gostaria de viver numa casa sem água potável ou rede sanitária? Ficaria despreocupado caso sua esposa, em trabalho de parto, tivesse que recorrer à caridade de um vizinho, para ter seu filho numa bacia? Viveria sem creme dental ou desodorante?

Estas situações, verdadeiramente, dão o que pensar... Há companheiros nossos, que, se não chegam a esses cúmulos, parecem viver em pleno século XIX, época em que Kardec rascunhou e publicou a primeira versão da obra pioneira, cujo sesquicentenário, agora, comemoramos (1857-2007). Tentam, a todo custo, interpretar as idéias da Codificação como se elas fossem “a modernidade”, a “última palavra” em tudo e para tudo, por todo o sempre... É claro que não podemos desprezar o contexto sócio-histórico-cultural daquela época; ele é a bússola para entender porque Kardec fez esta ou aquela pergunta, ou, em contraponto, o motivo de não ter, ele, abordado tal ou qual situação (engenharia genética, uniões homossexuais, viagens interplanetárias, televisão digital, etc.). Certas pessoas parecem ter parado no tempo... Ou, aparentam viver em outro século, noutra realidade, em outro planeta... Kardec (nem os Espíritos Superiores) não pôde dizer tudo, porque havia muitos outros horizontes de conhecimento a divisar e descortinar, seja por existir limitações de vocabulário, de entendimento, de cientificidade para os homens de seu tempo, como ficou patente nos textos de origem espiritual.

Nosso contributo à obra kardequiana decorre do estudo constante, da revisão comparativa (com o progresso científico e cultural de nosso tempo), submetendo a produção espírita dos encarnados e dos desencarnados, ao exame criterioso de validade, utilidade e sustentabilidade, nas novas proposições e teorias. A codificação não é tudo, nem poderia ser, a não ser que admitíssemos o estacionamento espiritual, individual e coletivo, ou que fechássemos os olhos ao derredor, dogmatizando o Espiritismo. Como um rio que precisa seguir o curso natural, ou, até, precisando edificar diques, represas ou usinas hidrelétricas, deixemos crescer a doutrina, e, melhor, dando nossa contribuição ativa para tal.

 Marcelo Henrique Pereira, Mestre em Ciência Jurídica. Delegado e Secretário para a promoção da juventude da Confederação Espírita Pan-Americana (CEPA) e Presidente da Associação de Divulgadores do Espiritismo de Santa Catarina.


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Embora o Espiritismo já nos haja dado a chave de muitas coisas,
ainda não nos disse a sua última palavra...
Allan Kardec in REVISTA ESPÍRITA - Jornal de Estudos Psicológicos,
publicada sob a direção de Allan Kardec,
maio de 1861 (O Anjo do cólera)

...é incontestável que o Espiritismo tem muito a nos ensinar;
é o que nunca cessamos de repetir,
porque jamais pretendemos
que ele tenha dito sua última palavra.
Allan Kardec in REVISTA ESPÍRITA - Jornal de Estudos Psicológicos,
publicada sob a direção de Allan Kardec,
agosto de 1865 (O que ensina o Espiritismo)


O Espiritismo está longe de haver dito a última palavra,
quanto às suas consequências, mas é inamolgável em sua base,
porque esta base está assentada nos fatos.
Allan Kardec in REVISTA ESPÍRITA - Jornal de Estudos Psicológicos,
publicada sob a direção de Allan Kardec,
fevereiro de 1865 (Da perpetuidade do Espiritismo)


Fonte: Revista Harmonia - Ano XX – Nº 149 - Fevereiro 2007

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