É lei da Natureza a desigualdade das condições sociais?
“Não; é obra do homem e não de Deus.”
(O Livro dos Espíritos, questão 806, Desigualdades Sociais)

 

Há décadas que o movimento espírita não passava por fenômeno tão curioso, como esse que observamos nos últimos anos: espíritas defensores de certas pautas políticas acusando outros espíritas por defenderem pautas políticas; espíritas afirmando que o espiritismo não se preocupa com questões sociais; espíritas defendendo porte de armas e, também, espíritas defendendo a pena de morte.

Ao mesmo tempo que esses discursos criam diversos problemas internos, como uma grande evasão de frequentadores de casas espíritas que não corroboram essas concepções esdrúxulas e belicosas existe, também, um grande ponto positivo: o verniz social já não se sustenta tão bem no calor dos debates, quanto na postura morna daqueles que tentavam esconder suas ideologias.

Vejam, há uma grande diferença entre aquele que se posiciona após muita reflexão dos que tentam, de forma quase infantil, fingir um discurso imparcial. Diante da dor alheia não é possível um posicionamento neutro. Ou você está do lado do sofredor ou do lado do sistema, da manutenção do sofrimento dos subalternos, dos marginalizados do mundo.

Ontem (04/11/2019), tive contato com um texto que afirmava, depois de outras barbaridades, que o espiritismo não se preocupa com às questões sociais, visto que a reencarnação explica, por exemplo, a existência da pobreza e da riqueza. Essa afirmação demonstra a intenção clara em deslocar o debate, acerca das desigualdades sociais, para fora das tribunas e grupos de estudos espíritas. Por que encontramos esse tipo de defesa dentro do movimento espírita? Será medo, ignorância ou má-fé?

Em O Livro dos Espíritos, Allan Kardec questiona se é lei da Natureza a desigualdade das condições sociais. Os espíritos respondem: Não; é obra do homem e não de Deus. [1]

Na questão 803, ainda n’O Livro dos Espíritos, Kardec indaga:
Perante Deus, são iguais todos os homens?
“Sim, todos tendem para o mesmo fim e Deus fez Suas leis para todos. Dizeis frequentemente: “O Sol luz para todos” e enunciais assim uma verdade maior e mais geral do que pensais.”

Todos os homens estão submetidos às mesmas leis da Natureza. Todos nascem igualmente fracos, acham-se sujeitos às mesmas dores e o corpo do rico se destrói como o do pobre. Deus a nenhum homem concedeu superioridade natural, nem pelo nascimento, nem pela morte: todos, aos Seus olhos, são iguais.

Já na questão 808, Kardec pergunta:
A desigualdade das riquezas não se originará da das faculdades, em virtude da qual uns dispõem de mais meios de adquirir bens do que outros?
“Sim e não. Da velhacaria e do roubo, que dizeis?”
E na subpergunta, temos:
a) – Mas, a riqueza herdada, essa não é fruto de paixões más.
“Que sabes a esse respeito? Busca a fonte de tal riqueza e verás que nem sempre é pura. Sabes, porventura, se não se originou de uma espoliação ou de uma injustiça? Mesmo, porém, sem falar da origem, que pode ser má, acreditas que a cobiça da riqueza, ainda quando bem adquirida, os desejos secretos de possuí-la o mais depressa possível, sejam sentimentos louváveis? Isso o que Deus julga e eu te asseguro que o Seu juízo é mais severo que o dos homens.”

Quais são as conclusões que podemos chegar a partir dessas questões d’O Livro dos Espíritos?

a) Que a pobreza é fruto de causas morais: da ignorância do rico ou da preguiça do pobre;
b) Que a pobreza é fruto de causas naturais: os pobres são pobres porque nasceram pobres. Sempre foi assim e assim deve ser.
c) Que a pobreza é fruto de um desenvolvimento contraditório, pelo qual os ricos se tornam cada vez mais ricos às custas dos pobres cada vez mais pobres.

Aos nossos olhos, só o último item explica de forma razoável a pobreza como opressão e dependência, sendo essa uma preocupação de todo aquele que se preocupa pelo bem-estar físico-espiritual de todos.

A pobreza não pode ser vista como um problema individual, visto que isso acarreta que todos os trabalhos sociais espíritas fiquem circunscritos ao assistencialismo necessário, mas que não resolve o problema. Essa visão, como diz muito bem (PIXLEY e BOFF, 1986), leva-nos “a postura que é preciso dar aos pobres e não despertá-los. É preciso dar-lhes esmolas, escolas, etc. Nesse sentido, os messias salvadores dos pobres são naturalmente os ricos e poderosos, pois eles que têm.”
(Jorge Pixley e Clodovis Boff, Opção pelos Pobres, Vozes, 1986)

A pobreza tem que ser vista como um problema social, coletivo. Como ignorar, meus irmãos e minhas irmãs, o fato de metade dos brasileiros viverem com 413 reais mensais [2]? Como crer que algumas atividades sociais, muitas dessas ocorrendo semanalmente, ou mensalmente, resolverá ou diminuirá essa realidade que se apresenta a todos nós?

É muito estranho observar espíritas serem atacados pela defesa do óbvio. A defesa para que todos tenham educação, alimentação, moradia, trabalho deveria ser pauta de todos os espíritas, e não só dos que se apresentam como Espíritas à Esquerda.

Que Jesus, nosso mestre amigo, que não se calou diante das estruturas e dos poderosos [3] possa abençoar a todos.

 Autor: Elton Rodrigues - Licenciado em Física (UFRJ) e Mestrando em Biofísica (CBPF). É membro fundador da Associação Física e Espiritismo da Cidade do Rio de Janeiro (AFE-RIO) e editor da revista O Fóton.

[1] Allan Kardec, O Livro dos Espíritos, questão 806
[2] https://brasil.elpais.com/…/economia/1572454880_959970.html…
[3] Lucas 19, 29 – 21,38

 


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