O poeta português Fernando Pessoa certa vez disse que “navegar é preciso”. Kardec através da obra “O Livro dos Espíritos” nos explica no capítulo 3 referente às Leis Morais que em nosso trilhar evolutivo “trabalhar é preciso”. Apresenta a “Lei do Trabalho” como um caminho ao progresso na contínua busca do nosso desenvolvimento espiritual, que, apesar de parecer um percurso lógico para lapidarmos nossas habilidades e potencialidades, a história demonstra que o entendimento da necessidade da labuta foi entendida de diversas formas e em determinados momentos muito diferente a apresentada pela doutrina espírita.

A palavra trabalho vem do latim “tripalium”, composta por “tri” (três) e “palum” (madeira) traduzida como três paus, um instrumento de tortura utilizado pelo império romano. Deste conceito podemos entender que a palavra apresenta uma carga de punição, de castigo para quem necessita passar por determinado sofrimento. Deste conceito, analisamos que o trabalho é visto como um fardo a ser carregado pelos menos privilegiados e agraciados de Deus.

Neste contexto de punição divina o trabalho também é identificado como uma maldição, oriunda do pensamento que fomos punidos pelo “pecado original”, quando Adão e Eva, expulsos do paraíso, tiveram que se alimentar com o suor do próprio corpo. A reflexão que o casal estava aproveitando todos os privilégios e benefícios do jardim do Éden e pela falha de suas condutas foram destinados ao trabalho árduo na busca do alimento, na construção de moradia e no enfrentamento das intempéries de um planeta hostil, leva ao pensamento que trabalhamos porque pagamos pelo erro cometido.

A maioria das sociedades foi estruturada sob o conceito que os mais fortes, militarmente, financeiramente ou intelectualmente, direcionam as regras e criam diretrizes às quais os mais fracos ficam submetidos. Deste sentimento de servidão do mais fraco  deu origem aos sistemas escravocratas que verificamos ao longo de toda a história da humanidade. Desde tempos remotos, como nos relatos da história do povo hebreu retirado do Antigo Testamento ou nas páginas de nossa história onde povos africanos foram submetidos a trabalhos forçados, verificamos na imposição do trabalho uma carga de castigo, de imposição da tarefa a ser realizada pela opressão.

Percebemos, desta forma, o desenvolvimento do pensamento ao longo dos tempos que trabalhar significa a perda da liberdade. Patrícios no império romano, a nobreza da Europa medieval e posteriormente a burguesia que se fortalece no renascimento comercial, se utilizavam de escravos e proletários que entendem o trabalho a que são submetidos na sua essência morfológica, isto é, o tripalium que caracteriza a tortura e o castigo de perder a liberdade.  Desde a sua origem, a palavra traz a noção de ser um martírio baseado na posição de uma condição de inferioridade diante do próximo que sempre o oprimirá.

No entanto, ao verificamos outra definição trazida pelos precursores da Doutrina, pois Platão em suas obras “O Banquete” e “A República” apresenta a palavra póiesis como significado de “criação”, de “ação”. Neste pensamento associado à criação, o trabalhador se entende construtor, produtor, no qual ao criar se recria a cada momento que desempenha no trabalho sua potencialidade de construção de seus valores intelectuais e morais.

Neste entendimento sobre o trabalho não estão associados valores financeiros, cargos hierárquicos, tempo ou espaço, mas apenas a vontade de criar e se recriar. No poema, citado no início deste artigo, Fernando Pessoa complementa seu pensamento de que navegar é preciso com a frase “viver não é preciso, não é necessário, mas a necessidade está em criar”. Podemos entender este pensamento do ato da criação relacionada ao trabalho em sua mais sublime essência, encontrada na filosofia de vida dos grandes Espíritos.

Jesus foi o próprio exemplo vivo e prático da Lei do Trabalho, pois viveu para o serviço ao próximo. Condenou a lei mosaica que obriga não trabalhar aos sábados (Lucas 13:14 e 15), demonstrando que o Pai trabalha (cria) constantemente. Bezerra de Menezes, o Médico dos Pobres, entendia a póiesis de ser médico, dedicando sua vida aos necessitados, independente dos recursos de que dispunha, e demonstra o desapontamento com colegas de serviço que trabalhavam focados no objetivo da conquista material, mencionando que esses não são médicos, mas negociantes de medicina.

A Doutrina Espírita nos demonstra que trabalhar não é uma exclusividade de nosso plano terrestre e que em orbes superiores a espiritualidade trabalha incessantemente à harmonia do Universo. Em oposição ao pensamento da punição do pecado original, no qual se assume que os punidos foram expulsos do paraíso e tiveram que ser submetidos à necessidade do trabalho, Kardec explica que mesmo nos planos mais aperfeiçoados existe a necessidade do trabalho, nos quais este assume natureza diversa e relativa ao seu grau de desenvolvimento alcançado, e que nas esferas mais evoluídas, a ociosidade seria um suplício (LE q.678).

Neste contexto podemos entender o trabalho como caminho para lapidarmos nossas virtudes, pois não basta apenas vivermos as nossas vidas baseadas nos prazeres e na busca de nossos desejos, mas é necessário criarmos, produzirmos, isto é trabalharmos. O trabalho, portanto, não deve ser entendido somente como meio para obtermos sustento ou ampliarmos os bens materiais, mas fundamentalmente à construção de valores morais obtidos no relacionamento com o próximo. É no desenvolvimento da “Educação Moral”, que consiste a arte de formar os caracteres,  criando hábitos.

Kardec, educador por profissão, explica que a “educação é o conjunto de hábitos adquiridos e somente uma educação bem entendida pode curar as chagas sociais da ´desordem´ e da ´imprevidência´”. É o trabalho analisado como processo educacional no aprendizado do amar ao próximo como a si mesmo. Semelhante ao exemplo do Rabi da Galileia que veio à carne para servir e não para ser servido, a Doutrina explica, ao contrário do que os livros de história demonstram, que o forte deve trabalhar pelo fraco, com o pensamento do dever associado ao serviço da sociedade, exercitando a lei da caridade. (LE q.685a).

Através da análise dos conceitos apresentados pelo Espiritismo com relação a importância do trabalho como processo evolutivo do Espírito, podemos assumir a necessidade de entendermos a labuta semelhante a conclusão da póiesis de Fernando Pessoa quando nos diz que “Cada vez mais ponho da essência anímica do meu sangue o propósito impessoal de engrandecer a pátria e contribuir para a evolução da humanidade.

A essência da alma, isto é do Espírito encarnado que anima um corpo, dá-se através do trabalho, neste plano, na lapidação de nós mesmos, pela extinção do egoísmo e na construção de um planeta regenerado.

Marcelo Ferreira

Expositor da FEESP - https://feesp.com.br

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