A ideia da abolição tornou-se, ao longo da década de 1880, um

 guarda-chuva sob o qual se agasalharam-se diferentes

tendências e matizes”, esclarece a historiadora Maria Helena

Machado, em o plano e o pânico. Nesse rol, podemos incluir as

propostas defendidas pelos espíritas. A preocupação dos

adeptos da doutrina codificada por Allan Kardec com a

escravidão já vinha de longa data.

 


Em julho de 1869, o primeiro periódico espírita brasileiro,

publicado em Salvador, assumia o seguinte compromisso:

O Écho d’Além-Tumulo deduzirá de cada assinatura realizada

1$000, cuja soma será anualmente publicada e destinada para

dar liberdade a escravos, de qualquer cor, do sexo feminino, de

4 a 7 anos de idade, nascidos no Brasil”.


Para alguns espíritas, o compromisso com o fim da escravidão

precedeu sua conversão à doutrina. Esse era o caso de

importantes lideranças do espiritismo na corte, como Antônio

da Silva Neto, Adolfo Bezerra de Menezes Cavalcanti,

Francisco Leite de Bittencourt Sampaio e Francisco

Raimundo Ewerton Quadros. Ainda na década de 1860, eles

já se haviam manifestado contrários ao trabalho escravo.


Naquela época, a proposta mais recorrente era “emancipação”,

que consistia em adotar medidas paulatinas que contribuíssem

para substituir gradativamente a mão de obra escrava pelo

trabalhador livre. O termo “abolição” era evitado nas discussões

políticas, uma vez que a possibilidade de libertar todos os

escravos de uma só vez era refutada até mesmo por alguns dos

que condenavam o cativeiro. Temia-se que tal decisão pudesse

redundar em drásticas consequências, tais como: a

desorganização da produção agrícola, a crise econômica, o

despreparo do escravo para a vida em liberdade e a desordem

social. Por isso, havia o entendimento de que era necessário

preparar o país para a mudança.

 

LIBERTAR E EDUCAR OS ESCRAVOS

Movido por esse ideal e com intuito de propor soluções para o

problema, o engenheiro Antônio da Silva Neto publicou três


trabalhos: Estudos sobre a emancipação dos escravos no

Brasil (1866), Segundos estudos sobre a emancipação dos

escravos no Brasil (1867) e A Coroa e a emancipação do

elemento servil (1869). Neles, defendia a libertação dos filhos

das escravas, a adoção de medidas para educá-los e a extinção

da escravidão no prazo de 20 anos.


Bezerra de Menezes, médico e político reconhecido na corte,

tomou iniciativa semelhante e, em 1868, publicou o opúsculo A

escravidão no Brasil e as medidas que convém tomar para

extingui-la sem dano para a nação, no qual também defendia a

libertação dos filhos de ventre escravo.


A proposta apresentada por ambos não era uma novidade, nem

eles eram os únicos a defendê-la. Na verdade, ela estava

presente nos jornais e nos folhetos que circulavam pelas ruas da

corte. Além disso, tal medida encontrava-se em discussão no

Parlamento, mas só seria aprovada em 1871, por meio da Lei

do Ventre Livre.


Esse debate público sobre a escravidão se acirrou nos anos

seguintes e fervilhou na década de 1880, quando já se defendia

abertamente a necessidade urgente de abolição do trabalho

escravo. Nesse contexto, a imprensa tornou-se uma verdadeira

tribuna política. José do Patrocínio (1853-1905) é um caso

exemplar de como os abolicionistas utilizaram os jornais para

formar uma opinião pública favorável ao fim da escravidão.

Atuando à frente de alguns periódicos, como Gazeta de Notícias,

Gazeta da Tarde e Cidade do Rio, ele disparava constantes

ataques contra o escravismo.


Nesse momento, Antônio da Silva Neto, Bezerra de

Menezes, Bittencourt Sampaio e Ewerton


Quadros estavam em plena militância espírita, ocupando papel

de destaque em instituições espíritas da corte e contribuíam

ativamente nos periódicos espíritas em circulação. As

experiências adquiridas por esses homens em suas trajetórias

intelectual, profissional e política exerceram forte influência na

condução dada por eles ao trabalho de difusão do espiritismo no

Brasil. Com suas convicções e em diálogo com os princípios

espíritas, eles contribuíram para que as instituições espíritas se

posicionassem diante do debate sobre a escravidão.


KARDEC E A ESCRAVIDÃO

Em O Livro dos espíritos, Allan Kardec foi bem claro ao tratar do

assunto. Ao serem questionados, os espíritos responderam: “É

contrária à lei de Deus toda sujeição absoluta de um homem a

outro homem. A escravidão é um abuso de força.

Desaparecerão com o progresso, como gradativamente

desaparecerá todos os abusos”. Desse modo, o direito à

liberdade seria um princípio fundamental da doutrina espírita

por ser uma lei divina, logo toda forma de escravidão seria

condenável. No entanto, que interpretação os espíritas fizeram

desse ensinamento? As páginas da imprensa espírita trazem as

respostas para essa questão.


No final do século XIX, a imprensa consolidara-se como um

importante veículo difusor de ideias. Havia mais jornais em

circulação e crescia o público leitor. Os espíritas estavam

atentos a essas mudanças e, desde cedo, elegeram os

periódicos como um canal de propaganda espírita. Na década de

1880, circula vam na corte dois importantes periódicos

espíritas: a Revista da Sociedade Acadêmica Deus, Cristo e

Caridade e O Reformador. A imprensa espírita tinha como


principal objetivo a divulgação dos princípios da doutrina e a

refutação dos ataques dos detratores. No entanto, não se omitia

em relação às questões em debate no cenário nacional e não foi

diferente quanto à escravidão e sua abolição.


Desde o início, a imprensa espírita assumiu uma postura

contrária à escravidão, mas nem sempre defendeu a abolição.

Em artigo publicado em julho de 1882, na Revista da Sociedade

Acadêmica Deus, Cristo e Caridade, a redação do periódico

manifestava-se a favor da emancipação dos escravos, mas

afirmava que “a abolição é prejudicial ao escravo e perniciosa à

sociedade”. No entanto, ao longo da década de 1880, com o

avanço da campanha abolicionista, houve uma mudança de

posicionamento. Os espíritas foram abandonando o tom mais

moderado e passaram a defender o fim imediato da escravidão.


Para os espíritas da corte, a extinção do cativeiro era uma entre

outras reformas fundamentais para o progresso do país, tais

como: o estabelecimento de um Estado laico (uma forma de

limitar o ainda marcante poder da Igreja), a liberdade de

consciência, a garantia do acesso à terra e o estímulo à vinda de

imigrantes. Desse modo, além de dialogarem com os

abolicionistas, os espíritas também estavam integrados ao

debate político da época, adotando posicionamentos que os

aproximavam de certos agrupamentos políticos como os “novos

liberais”, os “liberais republicanos” e os “positivistas

abolicionistas”.


Nas páginas da imprensa, os espíritas defenderam o fim da

escravidão por via legal, sem estimular agitações ou revoltas.

Seu discurso sempre esteve voltado para os senhores de

escravos, os legisladores e o governo imperial. Em 15 de

novembro de 1884, um artigo publicado no Reformador,


assinado com o pseudônimo de Sedora, cobrava da classe

política uma atitude para livrar o país dessa doença: “Façam os

estadistas como os cirurgiões, extirpem o cancro que vicia e

corrói o organismo social, acabem com a escravidão”. Noutras

ocasiões, o recurso era apelar ao sentimento cristão da

população, em especial dos senhores, para estimulá-los a

conceder alforria aos seus cativos.


Com a reencarnação, “o senhor de hoje é o escravo de amanhã”.

Assim como outras correntes abolicionistas, os espíritas

avaliavam o problema da escravidão considerando os aspectos

políticos, econômicos e sociais; no entanto, eles construíram

discursos originais ao analisar a questão do ponto de vista

espiritual. Na perspectiva espírita, a luta contra a escravidão era

um movimento que ocorria em dois planos: no material e no

espiritual. Em várias oportunidades, eles rogaram a assistência

da espiritualidade na condução do problema, atribuíram os

avanços obtidos ao apoio dos espíritos desencarnados e

divulgaram comunicações espíritas favoráveis ao fim do

cativeiro.


Durante evento, em 1886, que lembrava o desencarne de Allan

Kardec, o orador, Manoel Fernandes Figueira, evocou o

auxílio do mundo espiritual: “Venha toda essa legião de espíritos

da América do Norte para auxiliar a obra da redenção na

América do Sul” (Reformador, 1º de maio de 1886). Figueira

pedia a contribuição de alguns ilustres já desencarnados como

Washington, Lincoln, Victor Hugo, Luís Gama e tantos outros

que haviam dado provas de “ardente caridade”. Desse modo, os

espíritas entendiam que a transformação social seria fruto do

intercâmbio entre o mundo terreno e o mundo espiritual.


A reencarnação também foi um argumento importante para

sensibilizar ou mesmo ameaçar os senhores. “Se conheceis a

verdade da multiplicidade das existências humanas, sabereis

também que o senhor de hoje é o escravo de amanhã, como

este já foi o dominador da véspera” (Reformador, 13 de maio de

1885). Na perspectiva espírita, a situação do senhor era pior do

que a do escravo, pois este já estaria expiando suas faltas nesta

existência, enquanto o senhor, ao subjulgar seu irmão, estaria

comprometendo seu futuro espiritual e assumindo novas dívidas

perante a justiça divina.


“Podemos, pois, nós que trabalhamos por ser espíritas,

esquivar-nos a auxiliar aqueles que se afanam na grande obra

de redenção dos cativos?” (Reformador, “Emancipação”, 13 de

maio de 1885). Tal pergunta soava como uma convocação.


O Reformador, então órgão oficial da Federação Espírita

Brasileira, conclamava os espíritas a cerrar fileiras com os

abolicionistas. Em sucessivos artigos, durante a década de

1880, o periódico defendeu ser um dever de todo espírita apoiar

a causa. Em 15 de julho de 1887, o compromisso era reforçado:

“A nós espíritas que respeitamos o Cristo como o nosso Mestre,

o nosso Modelo e o nosso Chefe cabe o posto de avançada nesta

cruzada bendita de liberdade”. De fato, os espíritas abraçaram a

causa.


CARTAS DE ALFORRIA NOS CENTROS ESPÍRITAS


Durante a campanha abolicionista, as instituições espíritas da

corte mobilizaram-se frequentemente para arrecadar donativos

que poderiam ter como destino o Fundo de Emancipação, ou

mesmo a compra imediata da carta de liberdade. Nas festas


organizadas pelos espíritas nas datas de nascimento e

desencarne de Allan Kardec ou no aniversário de um centro

espírita, o ponto alto era a entrega de uma carta de liberdade a

um escravo.


Segundo o historiador Eduardo Silva, no artigo “Resistência

negra, teatro e abolição”, essa prática havia se tornado comum

entre os abolicionistas. Ele afirma que “não houve grande

benefício, festa ou comemoração abolicionista que não se

encerrasse com a libertação de um ou mais escravos, levando

os espectadores ao arrebatamento, às lágrimas e ao

convencimento íntimo”.


Havia uma rede envolvendo os espíritas e os movimentos

abolicionistas. Um “grande número de associações libertárias,

beneficentes, abolicionistas, lojas maçônicas e órgãos da

imprensa” enviava seus representantes para os eventos

realizados pelas instituições espíritas, conforme noticiou o

Reformador em 15 de maio de 1883. Os espíritas, por sua vez,

marcavam presença nas atividades organizadas por esses

grupos e divulgavam suas ações em seus órgãos de informação.


Em março de 1884, quando a corte mergulhou em longos dias

de festejos para comemorar a abolição da escravidão no Ceará,

a Federação Espírita Brasileira nomeou comissões para

representá-la no evento e, através do Reformador saudou o

esforço das sociedades abolicionistas e a importante vitória

conquistada.


Em 13 de maio de 1888, o clima de alegria que envolveu a

cidade do Rio de Janeiro foi ainda maior e se estendeu por uma

semana de comemorações. A extinção da escravidão no Brasil

foi um acontecimento intensamente exaltado nas páginas do


Reformador. Ao longo da década de 1880, o abolicionismo havia

deixado de ser uma convicção de algumas lideranças espíritas

para se tornar um posição adotada pelas instituições espíritas

da corte. Desse modo, a imprensa espírita representou o

pensamento de uma coletividade que, além de ser espírita, era

abolicionista.

 Autor: Daniel Simões do Valle

Fonte:

http://www.espiritbook.com.br

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