Em agosto de 1863, Allan Kardec se encontrava em Ségur, para onde se retirara, mergulhado em sua nova obra, a respeito da qual a ninguém dera ciência do que se tratava.
Essa obra, a terceira da Codificação Espírita, teve como título, em sua primeira edição, Imitação do Evangelho, alterado a partir da edição seguinte, após observações do Sr. Didier e de outros companheiros.
Conforme o que se encontra em Obras Póstumas, pt. 2, cap. Imitação do Evangelho, ali ele recebe a resposta, vinda através do médium Sr. d’A…, à sua indagação a respeito do que pensava a Espiritualidade a respeito dessa nova obra.
Esse livro de doutrina terá considerável influência, pois que explanas questões capitais, e não só o mundo religioso encontrará nele as máximas que lhe são necessárias, como também a vida prática das nações haurirá dele instruções excelentes.(…)
Aproxima-se a hora em que te será necessário apresentar o Espiritismo qual ele é, mostrando a todos onde se encontra a verdadeira doutrina ensinada pelo Cristo. Aproxima-se a hora em que, à face do céu e da Terra, terás de proclamar que o Espiritismo é a única tradição verdadeiramente cristã e a única instituição verdadeiramente divina e humana. Ao te escolherem, os Espíritos conheciam a solidez das tuas convicções e sabiam que a tua fé, qual muro de aço, resistiria a todos os ataques.
No mês seguinte, setembro, o Codificador vai a Sainte-Adresse, uma comuna francesa na região administrativa da Alta-Normandia, no departamento Seine-Maritime, cerca de duzentos quilômetros de Paris.
Recentemente, o Movimento Espírita teve acesso a algumas cartas escritas pelo Codificador à sua esposa Amélie Boudet, que ficara em Paris. São cartas que nos dão a dimensão desse extraordinário homem que foi Allan Kardec, esposo carinhoso e dedicado servidor do Cristo.
Apresentamos ao público, nesta edição, a primeira carta.
Sainte-Adresse, domingo, 6 de setembro de 1863.
Minha cara Amélie,
Alegra-me a presteza com que me escreveste, apesar das ocupações a que por certo te entregavas naquele dia. Eu não estava inquieto porque sei que os Espíritos bons nos protegem, e contente fiquei por saber de tua chegada sem contratempos.
No mesmo dia fui levar tuas recomendações às Sras. Foulon e Mambarel, as quais te agradecem. Almocei e, no momento de partir, caiu um aguaceiro que me obrigou a tomar uma condução. Era o prenúncio de uma horrível tempestade que dura ainda. Não se pode fazer ideia do barulho ensurdecedor que se seguiu o dia inteiro e a noite, barulho de despertar os mortos, e, com mais forte razão, os vivos. Começo a me acostumar com os abalos de minha cabana. Realmente, é um belo espetáculo ver tudo isso da janela e estar abrigado ao mesmo tempo.
Após o almoço, estando ainda na casa da Sra. Foulon, a Sra. Mambarel obsequiou-me com uma comunicação a respeito de uma pastoral do bispo de Argel, cuja análise foi feita pela Sra. D´Ambel. Ela dá no que pensar. O mais interessante, porém, é que, tendo opinado que o arcebispo de Lyon provavelmente seguiria seu exemplo, minha presença neste momento naquela cidade teria sido inoportuna e me colocaria numa situação difícil; que provavelmente foi esse o motivo de me ter aconselhado a não ir lá. Em síntese, eis a resposta: Para muitos adeptos, a tua presença teria sido uma oportunidade para se manifestarem, por se sentirem obrigados por uma questão de devoção, Teria sido um pretexto para exercerem sobre eles perseguições que importa evitar neste momento, visto ser preciso reservar as forças para mais tarde. Os adversários esperavam tua chegada para isso e os falsos irmãos tirariam proveito da situação. Tua ausência frustrou-lhes o projeto. Esta a razão por que lá não devias ir, mesmo porque, de toda maneira, nós to teríamos impedido.
Darás conhecimento desta resposta ao Sr. D´Ambel e lhe dirás que eu ficaria muito contente se Erasto, a Verdade ou qualquer outro Espírito bom houvesse por bem me dar uma comunicação em meu retiro.
[…] À exceção do bom e do mau tempo, as novidades são muito restritas no que me respeita, razão porque encerro minha carta dizendo-te que estou bem de saúde e trabalhando sempre.
A tempestade parece acalmar-se um pouco; o Sol aparece, mas o horizonte ainda está carregado de nuvens de mau augúrio.
Adeus, cara Amélie, eu te abraço de todo o coração, rogando-te que me escrevas muitas vezes e recomendando-te que te cuides.
[assinado] HLD Rivail.
[…]Fico contente por Maria ter ido te esperar na estação ferroviária; é uma grande atenção da parte dela à qual agradeço.
[…]Não olvides de pôr, em tuas cartas, o endereço que eu havia esquecido: Rua da Praia.
O conteúdo desta primeira carta confirma, pois, em todos os pontos, o que figura em Obras póstumas, principalmente que Allan Kardec havia solicitado uma comunicação e acrescenta inúmeros detalhes, por exemplo, que Amélie havia acompanhado o marido e retornado a Paris, que Kardec residia em uma cabana à beira da praia, bem como as pessoas que conheceram naquela região, incluindo a Sra. Foulon, cuja menção encontramos no livro O céu e o inferno.
Carta extraída do artigo Como Allan Kardec preparou O Evangelho segundo o Espiritismo,
de Charles Kempf, traduzido por Evandro Noleto Bezerra, Revista Reformador, julho.2014.