O capítulo XVII d’O Evangelho Segundo o Espiritismo começa com o seguinte ensinamento: “Amai os vossos inimigos; fazei o bem aos que vos odeiam, e orai pelos que vos perseguem e vos caluniam. Porque se amais somente aqueles que vos amam, que recompensa haveis de ter? Os publicanos também não fazem o mesmo? E, se saudardes apenas os vossos irmãos, que fazeis de especial mais que os outros? Os gentios também não fazem assim? Sede, pois, vós outros, perfeitos, como vosso Pai celestial é perfeito”. Mt (5:44)
Esses são os caracteres da perfeição apresentados por Jesus, e Ele já começa afirmando que temos inimigos quando diz: “Amai os vossos inimigos”. Ele não pergunta se os possuímos, Ele afirma. Então, quem são os nossos inimigos? Como poderemos amá-los se não os conhecemos? Mas basta um olhar mais atento para encontrá-los: desestrutura na família, violência, exploração no trabalho, políticos, competição de toda ordem. São muitos os inimigos.
A própria sociedade se encarrega de identificar os inimigos do momento, e toda a história humana foi assim: “lá está o inimigo”, “ali reside o mal”, precisamos nos afastar, ignorar, eliminar. E o mal permanece, entramos e saímos das existências e o mal nasce e renasce na humanidade.
E se eu descubro que meu maior inimigo reside em mim, e que é justamente esse o inimigo que preciso amar?
Quais são, então, os inimigos que precisamos amar?
Conforme Jung1, “muitas vezes é trágico ver como uma pessoa estraga de modo evidente a própria vida e a dos outros, e como é incapaz de perceber até que ponto essa tragédia parte dela e é alimentada progressivamente por ela mesma”. E diante dessa reflexão não nos é possível o engano, causamos o mal e muitas vezes nos portamos como o ‘inimigo’ para o outro, e pior ainda, somos o nosso maior inimigo. Será que estávamos procurando os inimigos no lugar errado, ou talvez projetando nos outros o que não reconhecemos em nós?
Será que os nossos reais inimigos não são outros: insegurança, perfeccionismo, falta de humildade, falta de respeito, vitimização, controle, racionalização, inveja, deslealdade e infidelidade, etc?
Não seriam esses os nossos inimigos que nos impedem de olhar profundamente a vida e de amar ao outro, já que não os reconhecendo em nós os projetaremos e não conseguiremos amar ao próximo quando ele nos revela o que somos? Será que a nossa limitação em percebermos quem somos não esbarra exatamente nesses inimigos?
Como podemos amar, então, os nossos inimigos?
O primeiro passo é aceitarmos profundamente o que somos, caso contrário não poderemos mudar. Se não descobrirmos onde reside o nosso mal estaremos todo o tempo atendendo à demanda do ego, ou seja, estaremos acreditando que as respostas estarão fora e que somos realmente pobres vítimas da vida.
Jesus, em Sua profunda capacidade de compreender a natureza humana, sabia que não tínhamos capacidade para “sermos perfeitos tal qual o Pai celestial”, mas como explica Kardec n’O Livro dos Espíritos, os homens daquela época (e nós também) não compreenderiam suas palavras se fossem ditas de outra maneira. Mas à criatura não é dada a capacidade de ser como o Criador, pois conforme afirma Joanna de Ângelis2: “... nenhuma possibilidade existe de alguém ser ‘perfeito como perfeito é o vosso Pai Celestial. Não obstante, se pode inferir que é possível despojar-se do primarismo, como o diamante que para brilhar deve libertar-se de toda a ganga, passando pela necessária lapidação...”.
Ser perfeito na condição humana é esforçar-se para se tornar melhor a cada dia, buscando uma conexão profunda com Deus, vivendo a vida como Cristo nos ensinou, com dignidade e integralidade, com coragem e acima de tudo com amor. Assim entendida a perfeição, a nossa finalidade deve ser a busca da totalidade, a unicidade com Deus. E Deus reside onde poucos de nós O procuramos.
Fonte: Correio Espírita
1 JUNG, Carl G. AION: estudos sobre o simbolismo do si-mesmo. Editora Vozes
2 Jesus e o Evangelho à luz da psicologia profunda. Leal Editora.