• Gênese moisaica - Os seis dias


Ao estudarmos a origem e a constituição do universo, conformemente aos dados fornecidos pela ciência, quanto à parte material, e pelo Espiritismo, quanto à parte espiritual, convém ponhamos em confronto com tudo isso o próprio texto da Gênese de Moisés, a fim de que cada um faça a comparação e julgue com conhecimento de causa. Algumas explicações complementares bastarão para tornar compreensíveis as partes que precisam de esclarecimentos especiais.


Sobre alguns pontos, há, sem dúvida, notável concordância entre a Gênese moisaica e a doutrina científica; mas, fora erro acreditar que basta se substituam os seis dias de 24 horas da criação por seis períodos indeterminados, para se tornar completa a analogia. Não menor erro seria o acreditar-se que, afora o sentido alegórico de algumas palavras, a Gênese e a ciência caminham lado a lado, sendo uma, como se vê, simples paráfrase da outra.


É inteiramente arbitrário o número de seis períodos geológicos, pois que se eleva a mais de vinte e cinco o das formações bem caracterizadas, número que, ao demais, apenas determina as grandes fases gerais. Ele só foi adotado, em começo, para encaixar as coisas, o mais possível, no texto bíblico, numa época, aliás pouco distante, em que se entendia que a ciência devia ser controlada pela Bíblia. Essa a razão por que os autores da maior parte das teorias cosmogônicas, tendo em vista facilitar-lhe a aceitação, se esforçaram por pôr-se de acordo com o texto sagrado. Logo que se apoiou no método experimental, a ciência sentiu-se mais forte e se emancipou. Hoje, é ela que controla a Bíblia.


Doutro lado, a geologia, tomando por ponto de partida unicamente a formação dos terrenos graníticos, não abrange, no cômputo de seus períodos, o estado primitivo da Terra. Tampouco se ocupa com o Sol, com a Lua e com as estrelas, nem com o conjunto do universo, assuntos esses que pertencem à astronomia. Para enquadrar tudo na Gênese, cumpre se acrescente um primeiro período, que abarque essa ordem de fenômenos e ao qual se poderia chamar — período astronômico.


Além disso, nem todos os geólogos consideram o diluviano como formando um período distinto, mas como um fato transitório e passageiro, que não mudou sensivelmente o estado climático do globo, nem marcou uma fase nova para as espécies vegetais e animais, pois que, com poucas exceções, as mesmas espécies se encontram, assim antes, como depois do dilúvio. 


O quadro comparativo aqui abaixo, em o qual se acham resumidos os fenômenos que caracterizam cada um dos seis períodos, permite se considerar o conjunto e se  notar as relações e as diferenças que existem entre os referidos períodos e a Gênese bíblica.


CIÊNCIA
















































































GÊNESE

1.º DIA. — O Céu e a Terra. — A luz.


2.º DIA. — O Firmamento. — Separação das águas que estão acima do Firmamento das que lhe estão debaixo.


3.º DIA. — As águas que estão debaixo do Firmamento se reúnem; aparece o elemento árido. — A terra e os mares. — As plantas.


4.º DIA. — O Sol, a Lua e as estrelas.


5.º DIA. — Os peixes e os pássaros.


6.º DIA. — Os animais terrestres. — O homem

I. PERÍODO ASTRONÔMICO. — Aglomeração da matéria cósmica universal, num ponto do espaço, em nebulosa que deu origem, pela condensação da matéria em diversos pontos, às estrelas, ao Sol, à Terra, à Lua e a todos os planetas. Estado primitivo, fluídico e incandescente da Terra. — Atmosfera imensa carregada de toda a água em vapor e de todas as matérias volatilizáveis


II. PERÍODO PRIMÁRIO. — Endurecimento da superfície da Terra, pelo resfriamento; formação das camadas graníticas. — Atmosfera espessa e ardente, impenetrável aos raios solares. — Precipitação gradual da água e das matérias sólidas volatilizadas no ar. — Ausência completa de vida orgânica.

III. PERÍODO DE TRANSIÇÃO. — As águas cobrem toda a superfície do globo. — Primeiros depósitos de sedimentos formados pelas águas. — Calor úmido. — O Sol começa a atravessar a atmosfera brumosa. — Primeiros seres organizados da mais rudimentar constituição. — Liquens, musgos, fetos, licopódios, plantas herbáceas. Vegetação colossal. — Primeiros animais marinhos: zoófitos, polipeiros, crustáceos. — Depósitos de hulha.

IV. PERÍODO SECUNDÁRIO. — Superfície da Terra pouco acidentada; águas pouco profundas e paludosas. Temperatura menos ardente; atmosfera mais depurada. Consideráveis depósitos de calcáreos pelas águas. — Vegetação menos colossal; novas espécies; plantas lenhosas; primeiras árvores. — Peixes; cetáceos; animais aquáticos e anfíbios.


V. PERÍODO TERCIÁRIO. — Grandes intumescimentos da crosta sólida; formação dos continentes. Retirada das águas para os lugares baixos; formação dos mares. — Atmosfera depurada; temperatura atual produzida pelo calor solar. — Gigantescos animais terrestres. Vegetais e animais da atualidade. Pássaros.


DILÚVIO UNIVERSAL

VI. PERÍODO QUATERNÁRIO OU PÓS-DILUVIANO. — Terrenos de aluvião. — Vegetais e animais da atualidade. — O homem.


Desse quadro comparativo, o primeiro fato que ressalta é que a obra de cada um dos seis dias não corresponde de maneira rigorosa, a cada um dos seis períodos geológicos. A concordância mais notável se verifica na sucessão dos seres orgânicos, que é quase a mesma, com pequena diferença, e no aparecimento do homem, por último. É esse um fato importante.


Há também coincidência, não quanto à ordem numérica dos períodos, mas quanto ao fato em si, na passagem em que se lê que, ao terceiro dia, “as águas que estão debaixo do céu se reuniram num só lugar e apareceu o elemento árido.” É a expressão do que ocorreu no período terciário, quando as elevações da crosta sólida puseram a descoberto os continentes e repeliram as águas, que foram formar os mares. Foi somente então que apareceram os animais terrestres, segundo a geologia e segundo Moisés.


Dizendo que a criação foi feita em seis dias, terá Moisés querido falar de dias de 24 horas, ou terá empregado essa palavra no sentido de período, de duração? É mais provável a primeira hipótese, se nos ativermos ao texto acima: primeiramente, porque esse é o sentido próprio da palavra hebraica iôm, traduzida por dia; depois, a referência à tarde e à manhã, como limitações de cada um dos seis dias, dá lugar a que se suponha haja ele querido falar de dias comuns. 


Aliás, tudo, na criação, era miraculoso e, desde que se envereda pela senda dos milagres, pode-se perfeitamente crer que a Terra foi feita em seis vezes 24 horas, sobretudo quando se ignoram as primeiras leis naturais. Todos os povos civilizados partilharam dessa crença, até ao momento em que a geologia surgiu para demonstrar a impossibilidade.


Um dos pontos que mais criticados têm sido na Gênese é o da criação do Sol depois da luz. Tentaram explicá-lo, com o auxílio mesmo dos dados fornecidos pela geologia, dizendo que, nos primeiros tempos de sua formação, por se achar carregada de vapores densos e opacos, a atmosfera terrestre não permitia se visse o Sol que, assim, efetivamente não existia para a Terra. Semelhante explicação seria, porventura, admissível se, naquela época, já houvesse na Terra habitantes que verificassem a presença ou a ausência do Sol. Ora, segundo o próprio Moisés, então, somente plantas haviam, as quais, contudo, não teriam podido crescer e multiplicar-se sem o calor solar.


Há, pois, evidentemente, um anacronismo na ordem que Moisés estabeleceu para a criação do Sol; mas, involuntariamente ou não, ele não errou, dizendo que a luz precedeu o Sol.


O Sol não é o princípio da luz universal; é uma concentração do elemento luminoso em um ponto, ou, por outra, do fluido que, em dadas circunstâncias, adquire as propriedades luminosas. Esse fluido, que é a causa, havia necessariamente de preceder ao Sol, que é apenas um efeito. O Sol é causa, relativamente à luz que dele se irradia; é efeito, com relação à que recebeu.


O erro provém da ideia falsa, alimentada por longo tempo, de que o universo inteiro começou com a Terra. Daí não compreenderem que o Sol pudesse ser criado depois da luz. Em princípio, a asserção de Moisés é perfeitamente exata: é falsa no fazer crer que a Terra tenha sido criada antes do Sol. Estando, pelo seu movimento de translação, sujeita a esse último, a Terra teve de ser formada depois dele. É o que Moisés não podia saber, pois ignorava a lei de gravitação.


Moisés, evidentemente, partilhava das mais primitivas crenças sobre a cosmogonia. Como os do seu tempo, ele acreditava na solidez da abóbada celeste e em reservatórios superiores para as águas. 


A fim de compreendermos certas partes da Gênese, faz-se indispensável que nos coloquemos no ponto de vista das idéias cosmogônicas da época que ela reflete.


Em face dos progressos da física e da astronomia, é insustentável semelhante doutrina. Entretanto, Moisés atribui ao próprio Deus aquelas palavras. Ora, visto que elas exprimem um fato notoriamente falso, uma de duas: ou Deus se enganou em a narrativa que fez da sua obra, ou essa narrativa não é de origem divina. Não sendo admissível a primeira hipótese, forçoso é concluir que Moisés apenas exprimiu suas próprias ideias. 


Ele narrou com mais acerto, dizendo que Deus formou o homem do limo da Terra*. A ciência, com efeito, mostra que o corpo do homem se compõe de elementos tomados à matéria inorgânica, ou, por outra, ao limo da terra. A mulher formada de uma costela de Adão é uma alegoria, aparentemente pueril, se admitida ao pé da letra, mas profunda, quanto ao sentido. Tem por fim mostrar que a mulher é da mesma natureza que o homem, que é por conseguinte igual a este perante Deus e não uma criatura à parte, feita para ser escravizada e tratada qual hilota. Tendo-a como saída da própria carne do homem, a imagem da igualdade é bem mais expressiva, do que se ela fosse tida como formada, separadamente, do mesmo limo. Equivale a dizer ao homem que ela é sua igual e não sua escrava, que ele a deve amar como parte de si mesmo.


* O termo hebreu haadam, homem, do qual se compôs Adão e o termo haadama, terra, têm a mesma raiz.


Para espíritos incultos, sem nenhuma ideia das leis gerais, incapazes de apreender o conjunto e de conceber o infinito, essa criação milagrosa e instantânea apresentava qualquer coisa de fantástico que feria a imaginação. O quadro do universo tirado do nada em alguns dias, por um só ato da vontade criadora, era, para tais espíritos, o sinal mais evidente do poder de Deus. Que configuração, com efeito, mais sublime e mais poética desse poder, do que a que estas palavras traçam: “Deus disse: Faça-se a luz; e a luz foi feita!” Deus, a criar o universo pela ação lenta e gradual das leis da natureza, lhes houvera parecido menor e menos poderoso. Fazia-se-lhes indispensável qualquer coisa de maravilhoso, que saísse dos moldes comuns, do contrário teriam dito que Deus não era mais hábil do que os homens. Uma teoria científica e racional da criação os deixaria frios e indiferentes.


Não rejeitemos, pois, a Gênese bíblica; ao contrário, estudemo-la, como se estuda a história da infância dos povos. Trata-se de uma época rica de alegorias, cujo sentido oculto se deve pesquisar; que se devem comentar e explicar com o auxílio das luzes da razão e da ciência. Fazendo, porém, ressaltar as suas belezas poéticas e os seus ensinamentos velados pela forma imaginosa, cumpre se lhe apontem expressamente os erros, no próprio interesse da religião. Esta será muito mais respeitada, quando esses erros deixarem de ser impostos à fé, como verdade, e Deus parecerá maior e mais poderoso, quando não lhe envolverem o nome em fatos de pura invenção.




Referências:

A Gênese, os milagres e as predições segundo o Espiritismo - Cap. XII - Allan Kardec.


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