A filosofia do ser se assenta em uma questão básica: quem sou eu? Em diferentes momentos da história da filosofia, a digressão sobre essa pergunta buscou resposta sobre o fenômeno da existência: o que é a vida, quem sou eu, por que existo e para onde vou. Apresentamos, no primeiro item, algumas considerações sobre a filosofia do ser, embasadas em Descartes e Ortega y Gasset; no segundo, discorremos sobre o Criador na perspectiva da filosofia espírita e no terceiro buscamos uma síntese, também embasada na filosofia espírita.
1. A Filosofia do ser
Essa filosofia parte da questão “quem sou eu”, que impõe uma reflexão para além de dados biográficos pontuais. Essa é a pergunta que os filósofos têm feito a si mesmos, resultando no aparecimento de diferentes vertentes de filosofia, pois exige o pensar e a busca de transcendência da identidade imediata da existência. A questão impulsionou a filosofia de Descartes (1596-1650): “Je pense, je suis”. Para Descartes, a consciência do existir depende do pensar, do refletir, o que o tornou famoso quando suas palavras foram traduzidas para o latim, resumidas no “Cogito ergo sum”, posteriormente idealizadas na conhecida expressão “penso, logo existo”. Impossível a consciência do existir sem o pensamento e sem a questão primeira: “quem sou eu”. A pergunta, iniciada pelo pronome “quem” supõe uma definição para o ser (sou), eu (aquele que pergunta). A reflexão de Descartes diz respeito, não a um indivíduo, mas a todos os indivíduos que são semelhantes neste atributo. O humano se reconhece como tal porque desfruta da capacidade de pensar.
Entre vários pensadores que refletiram sobre essa questão “quem sou eu”, José Ortega y Gasset (1883-1955), filósofo espanhol também desenvolveu uma filosofia do ser. A frase que o tornou conhecido foi: “Eu sou eu e minha circunstância”. Embora muito citada, a frase não se encerra assim. Há um complemento que deve ser lembrado. A frase total diz: “Eu sou eu e minha circunstância e se não salvo a ela, não me salvo a mim”. Enquanto a filosofia de Descartes priorizava o indivíduo pensante, assim reconhecido porque responde à questão, quem sou eu, Gasset parte da suposição de que o indivíduo não existe no vácuo, ou seja, sua vida é circunstanciada. O eu e a circunstância estão intrinsecamente relacionados, ainda que se diferenciem. Mais ainda, essa noção do eu identifica um comprometimento moral. Se o eu não salva a circunstância, ele não salva a si mesmo. E o que é a circunstância? A resposta considera que a vida ocorre no mundo e viver é lidar com o mundo, estar e ser nele, ocupar-se dele sendo, portanto, impossível negá-lo. Dito de outra maneira, a circunstância é a base e o complemento do ser como pessoa. A circunstância inclui o eu(indivíduo) e os outros eus (demais indivíduos), que realizam um encontro. Pensar e ser, existir e estar no mundo...
2. A Filosofia sobre o Criador
Mesmo entre os pré-socráticos, pode-se observar uma vertente filosófica preocupada em dar conta dos problemas do ser, sua origem e seu destino. Essa perspectiva inclui a ideia de um Criador. Platão (428-347 a.C.), um dos principais discípulos de Sócrates, no mito da caverna expõe sobre o destino da alma humana. Hippolyte Léon Denizard Rivail (1804-1869), educador e pedagogo, discípulo na juventude de Pestalozzi, na maturidade, com vasto currículo e excelentes serviços prestados à educação escolar na França, utilizando o pseudônimo Allan Kardec nas tarefas da codificação do Espiritismo, também se atém a essas questões filosóficas. Dispondo de dados de observação sobre o ser e seu destino, em uma perspectiva que transcende a existência corpórea imediata, toma a decisão, inspirado pelos Espíritos superiores, de iniciar o livro de exposição da nova filosofia espiritualista com uma questão sobre o Criador. Kardec entendeu que a nova filosofia deveria discutir a vida em uma perspectiva que transcendesse a existência imediata. Então, visando alargar a compreensão do homem sobre Deus, excluiu, na primeira pergunta selecionada para O Livro dos Espíritos, qualquer possibilidade de uma visão antropomórfica, utilizando o pronome que. A pergunta “Que é Deus” pressupõe que o Criador não é um ente humano ou sobre-humano. Os Espíritos responsáveis pela revelação espírita não poderiam falar de algo que escapa à compreensão do homem, sem utilizar um termo designativo de um atributo conhecido, ainda que não uniforme na espécie. Então ofereceram uma resposta sintética, simples e ao mesmo tempo notável. Tomaram como elemento definidor o termo inteligência. E complementaram: “suprema”, acrescentando “causa primeira de todas as coisas”. Conclui-se, o que pode ser confirmado pela observação, que todos os elementos do universo, inclusive a vida, não fizeram a si mesmos. Tudo teve uma causa primária e, como o universo incomensurável se revela de maneira absolutamente perfeita, sua causa é igualmente perfeita.
3. À guisa de síntese
A criatura possui alguns, mas não todos os atributos do Criador. Por exemplo, Deus é eterno, ou seja, sempre existiu. Já a criatura teve um começo, porém é imortal. Deus é perfeito, por isso infalível, seus filhos são falíveis, contudo, podem se aproximar da perfeição. Jesus, que atingiu alto grau de perfectibilidade nos apresentou Deus como pai e se designou e a nós, por filhos de Deus. E assim considerando recomendou: “Sede perfeitos como vosso pai o é” (Mt, 5:48). Na filosofia do ser dos filósofos, como Descartes e Ortega y Gasset, o eu humano é o ser pensante. Para o filósofo espanhol, o eu está em si e na circunstância. Acrescentando a filosofia espírita a essas proposições teríamos: (a) o ser evolui pelo pensar (conhecimento), mas também pelo sentimento (amor); (b) não se salva por intercessão, mas evolui pelo esforço em muitas existências; (c) se não “salvar” a sua circunstância, ou seja, comprometer-se com a evolução dos demais, não avança. Conforme o Espiritismo, ninguém evolui na solidão. Se um membro do grupo fica à deriva (estaciona), alguém ou alguns o localizam, procurando ajudá-lo a encontrar o caminho do equilíbrio. A filosofia espírita faz uma síntese da filosofia do Ser e do Criador na perspectiva de um código de ética. Entre muitos filósofos espíritas que se ocuparam do tema, podemos citar Léon Denis (1846-1924) e, no Brasil, José Herculano Pires (1914-1979). Ambos destacados seguidores de Allan Kardec com contribuições importantes no avanço da doutrina espírita, especialmente na transformação do homem e do mundo.