A história da origem de quase todos os povos antigos se confunde com a de suas religiões, donde o terem sido religiosos os seus primeiros livros. E como todas as religiões se ligam ao princípio das coisas, que é também o da humanidade, elas deram, sobre a formação e o arranjo do universo, explicações em concordância com o estado dos conhecimentos da época e de seus fundadores. Daí resultou que os primeiros livros sagrados foram ao mesmo tempo os primeiros livros de ciência, como foram, durante largo período, o código único das leis civis.


Nas eras primitivas, sendo necessariamente muito imperfeitos os meios de observação, haviam muitos erros grosseiros nas primeiras teorias sobre o sistema do mundo. Mas, ainda quando esses meios fossem tão completos quanto o são hoje, os homens não teriam sabido utilizá-los. Aliás, tais meios não podiam ser senão fruto do desenvolvimento da inteligência e do consequente conhecimento das leis da natureza. À medida que o homem se foi adiantando no conhecimento dessas leis, também foi penetrando os mistérios da criação e retificando as ideias que formara acerca da origem das coisas.


Impotente se mostrou ele para resolver o problema da criação, até ao momento em que a ciência lhe forneceu para isso a chave. Teve de esperar que a astronomia lhe abrisse as portas do espaço infinito e lhe permitisse mergulhar aí o olhar; que, pelo poder do cálculo, foi possível se determinar com rigorosa exatidão o movimento, a posição, o volume, a natureza e o papel dos corpos celestes; que a física lhe revelasse as leis da gravitação, do calor, da luz e da eletricidade; que a química lhe mostrasse as transformações da matéria e a mineralogia os materiais que formam a superfície do globo; que a geologia lhe ensinasse a ler, nas camadas terrestres, a formação gradual desse mesmo globo. À botânica, à zoologia, à paleontologia, à antropologia coube iniciá-lo na filiação e sucessão dos seres organizados. Com a arqueologia pode ele acompanhar os traços que a humanidade deixou através das idades. Numa palavra, completando-se umas às outras, todas as ciências houveram de contribuir com o que era indispensável para o conhecimento da história do mundo. Em falta dessas contribuições, teve o homem como guia as suas primeiras hipóteses.


Quando a ciência abriu caminho, fendendo o velho edifício das crenças, tudo mudou de aspecto. Uma vez achado o fio condutor, as dificuldades prontamente se aplanaram. Em vez de uma Gênese imaginária, surgiu uma Gênese positiva e, de certo modo, experimental. O campo do universo se distendeu ao infinito. Acompanhou-se a formação gradual da Terra e dos astros, segundo leis eternas e imutáveis, que demonstram muito melhor a grandeza e a sabedoria de Deus, do que uma criação miraculosa, tirada repentinamente do nada, qual mutação à vista, por efeito de súbita idéia da Divindade, após uma eternidade de inação.


Pois sendo impossível conceber a Gênese sem os dados que a ciência fornece, pode dizer-se com inteira verdade que: a ciência é chamada a constituir a verdadeira Gênese, segundo a lei da natureza.


De todas as gêneses antigas, a que mais se aproxima dos modernos dados científicos, apesar dos erros que contém, é incontestavelmente a de Moisés. Alguns desses erros são mesmo mais aparentes do que reais e provêm, ou de falsa interpretação atribuída a certos termos, cuja primitiva significação se perdeu, ao passarem de língua em língua pela tradução, ou cuja acepção mudou com os costumes dos povos, ou, também, decorrem da forma alegórica peculiar ao estilo oriental e que foi tomada ao pé da letra, em vez de se lhe procurar o espírito.


A Bíblia, evidentemente, encerra fatos que a razão, desenvolvida pela ciência, não poderia hoje aceitar e outros que parecem estranhos e derivam de costumes que já não são os nossos. A alegoria ocupa ali considerável espaço, ocultando sob o seu véu sublimes verdades, que se patenteiam, desde que se desça ao âmago do pensamento, pois que logo desaparece o absurdo.


Por que então não se lhe ergueu mais cedo o véu? De um lado, por falta de luzes que só a ciência e uma sã filosofia podiam fornecer e, de outro lado, por efeito do princípio da imutabilidade absoluta da fé, consequência de um respeito ultracego à letra, e, assim, pelo temor de comprometer a estrutura das crenças, erguida sobre o sentido literal. 


Levando suas investigações às entranhas da Terra e às profundezas dos céus, demonstrou a ciência, de maneira irrefragável, os erros da Gênese moisaica tomada ao pé da letra e a impossibilidade material de se terem as coisas passado como são ali textualmente referidas. 


Se, com semelhantes contradições, a religião sofre dano, a culpa não é da ciência, que não pode fazer que o que é deixe de ser; mas, dos homens, por haverem, prematuramente, estabelecido dogmas absolutos, de cujo prevalecimento hão feito questão de vida ou de morte, sobre hipóteses suscetíveis de serem desmentidas pela experiência.


A ciência tem por missão descobrir as leis da natureza. Ora, sendo essas leis obra de Deus, não podem ser contrárias a religiões que se baseiam na verdade. Lançar anátema ao progresso, por atentatório à religião, é lançá-lo à própria obra de Deus. 


Somente as religiões estacionárias podem temer as descobertas da ciência. Elas, em geral, fazem tão mesquinha idéia da Divindade, que não compreendem que assimilar as leis da natureza, que a ciência revela, é glorificar a Deus em suas obras. 


A Gênese se divide em duas partes: a história da formação do mundo material e da humanidade considerada em seu duplo princípio, corporal e espiritual. A ciência tem se limitado à pesquisa das leis que regem a matéria. No próprio homem, ela apenas há estudado o envoltório carnal. Por esse lado, chegou a inteirar-se, com exatidão, das partes principais do mecanismo do universo e do organismo humano.


Mas a história do homem, considerado como ser espiritual, se prende a uma ordem especial de ideias, que não são do domínio da ciência propriamente dita. A filosofia, a cujas atribuições pertence, de modo mais particular, esse gênero de estudos, apenas há formulado, sobre o ponto em questão, sistemas contraditórios, que vão desde a mais pura espiritualidade, até a negação do princípio espiritual e mesmo de Deus, sem outras bases, afora as ideias pessoais de seus autores. 


Esta questão, no entanto, é a mais importante para o homem, por isso que envolve o problema do seu passado e do seu futuro. A do mundo material apenas indiretamente o afeta. O que lhe importa saber, antes de tudo, é de onde ele veio e para onde vai, se já viveu e se ainda viverá, qual a sorte que lhe está reservada.


Todas as religiões são acordes quanto ao princípio da existência da alma, sem, contudo, o demonstrarem. 


Dessas divergências no tocante ao futuro do homem nasceram a dúvida e a incredulidade. Entretanto, a incredulidade dá lugar a um penoso vácuo. O homem encara com ansiedade o desconhecido em que tem fatalmente de penetrar. Gela-o a ideia do nada. Diz-lhe a consciência que alguma coisa lhe está reservada para além do presente. Que será? Sua razão, com o desenvolvimento que alcançou, já lhe não permite admitir as histórias com que o acalentaram na infância, nem aceitar como realidade a alegoria. Qual o sentido dessa alegoria? A ciência lhe rasgou um canto do véu; não lhe revelou, porém, o que mais lhe importa saber. Por toda parte depara com a afirmação a se chocar com a negação, sem que de um lado ou de outro se apresentem provas positivas. Daí a incerteza, e a incerteza sobre o que concerne à vida futura faz que o homem se atire, tomado de uma espécie de frenesi, para as coisas da vida material .


Esse o inevitável efeito das épocas de transição: rui o edifício do passado, sem que ainda o do futuro se ache construído. 


Para fixar as ideias, faltou o elemento essencial: o conhecimento das leis a que se acha sujeito o princípio espiritual. 


Até então, o estudo do princípio espiritual, compreendido na metafísica, foi puramente especulativo e teórico. 


No Espiritismo, é inteiramente experimental. Com o auxílio da faculdade mediúnica, o homem se achou de posse de um novo instrumento de observação. A mediunidade foi, para o mundo espiritual, o que o telescópio foi para o mundo astral e o microscópio para o dos infinitamente pequenos. Permitiu que se explorassem, estudassem, por assim dizer, as relações daquele mundo com o mundo corpóreo; que, no homem vivo, se destacasse do ser material o ser inteligente e que se observassem os dois a atuar separadamente. Uma vez estabelecidas relações com os habitantes do mundo espiritual, possível se tornou ao homem seguir a alma em sua marcha ascendente, em suas migrações, em suas transformações. Pode-se, enfim, estudar o elemento espiritual. Eis aí o de que careciam os anteriores comentadores da Gênese, para a compreenderem e lhe retificarem os erros.


Estando o mundo espiritual e o mundo material em incessante contato, os dois são solidários; ambos têm a sua parcela de ação na Gênese. Sem o conhecimento das leis que regem o primeiro, tão impossível seria constituir-se uma Gênese completa.


Assim, apesar de nem a ciência material, nem a ciência espiritual poderem ter  dito a última palavra, possui o homem os dois elementos próprios a lançar luz sobre esse imenso problema. Eram-lhe absolutamente indispensáveis essas duas chaves para chegar a uma solução, embora aproximativa.




Referências:

A Gênese, os milagres e as predições segundo o Espiritismo  - Cap. IV  - Allan Kardec.



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