Há uma palavra mágica nos dicionários, leitor. Pouco ligamos a ela como tampouco, às vezes, ligamos a coisas tão essenciais à nossa tranquilidade e ao nosso progresso espiritual. Chama-se tolerância, essa palavra, e tem mil conotações diferentes, muitas nuanças e inúmeras facetas.

Sobre ela escreveu H. W. Vam Lonn em um dos seus interessantes livros, ora esgotado. O dicionário explica que tolerância é a qualidade daquele que é tolerante. Também menciona a palavra complacência. Tolerante é o que tolera, é o indulgente, o que desculpa, o que respeita a opinião alheia. Examinando bem de perto tolerância, complacência, indulgência, descobrimos que, embora tenham estreitas afinidades, são, na realidade, algo diferentes. Não entendo muito de etimologia, mas a mim me parece que tolerância tem sentido superior às duas outras expressões. Entendo que tolerar é uma atitude consciente, humana, sem restrições, compreensiva, livre de ironias como também de indiferenças. A complacência pode ser um dar de ombros, uma espécie de “não me importismo” de quem não quer incomodar-se com problemas alheios. A indulgência se me afigura algo irresponsável e conformista como atitude de uma pessoa fraca que não sente em si mesma coragem nem disposição para discutir o problema e, então, prefere acomodar-se. Nenhuma dessas restrições se aplica à tolerância: esta exige compreensão e lucidez; uma convicção de que a nossa opinião é mais correta, mas, ao mesmo tempo, o reconhecimento do direito alheio de discordar e pensar diferentemente; uma apreciação e uma troca de ideais com aqueles que se opõem às nossas, sempre admitindo a possibilidade de que, no fundo, em um ou outro ponto, é bem possível que eles tenham razão e estejam até mais certos do que nós. A tolerância exige equilíbrio emocional, convicção firme, mas não inflexível, certeza dos seus pontos de vista, mas não intransigência.

Para o espírita não deve ser difícil ser tolerante, pois sabe ele que os seres humanos são Espíritos encarnados e, como tal, se encontram em diferentes estágios evolutivos. Ainda outro dia dizia eu a alguns amigos que, se vivêssemos apenas uma vida, atingiríamos no mesmo espaço de tempo o mesmo grau de maturidade, como as frutas. Um cacho de bananas amadurece por igual ao fim de alguns dias, em idênticas condições de calor, luz e umidade. Nós, não. Encontramos velhos imaturos e crianças perfeitamente amadurecidas, equilibradas e sensatas. Portanto, é preciso que nos toleremos uns aos outros, que tolerar é uma das formas de amar.

Se os Espíritos superiores, que nos ajudam em nossas tarefas e nos orientam, fossem assumir atitudes intolerantes quanto à nossa ignorância, então ficaríamos entregues à nossa própria sorte. O que vemos, entretanto, é outra coisa. Vemo-los pacientes e compreensivos e muitas vezes apreensivos, a esperarem tolerantemente, enquanto vagamos por trilhas erradas.

Esse notável atributo humano é um escudo contra certas aflições da vida. Como diz aquela famosa oração (da serenidade), precisamos ter coragem para mudar as coisas que pudermos, paciência para aceitar o que não pudermos mudar e sabedoria para distinguir umas das outras. Todos nós precisamos de tolerância, sendo ela especialmente desejável numa família em que nem todos os membros pertençam ao mesmo grupo religioso. Espíritas, protestantes e católicos podem conviver  perfeitamente bem e em grande harmonia, desde que se respeitem e se tolerem. E claro que, numa família em que predomine a maioria católica, o membro espírita lamente intimamente o culto das imagens, por exemplo, mas não vai, com isso, atirá-las pela janela como quem joga fora um simples pedaço de pau. E preciso lembrar que para muitos aquela imagem representa seres respeitados e respeitáveis. Muitos dos nossos irmãos ainda precisam de uma representação material em que possam apoiar o seu culto.

O espírita que vive no seio de família católica terá sempre motivos de debate se quiser entregar-se à polêmica. E melhor, porém, que se cale quando não solicitado a pronunciar-se acerca de pontos de vista doutrinários. E, quando o fizer, diga as coisas com simplicidade e modéstia, sem empáfia e superioridade. Aquele que se julga superior, porque estudou uma doutrina realmente superior, ainda não está bem integrado nela. Esclarecer um ponto de vista próprio não implica atacar o alheio, nem mesmo a Doutrina Espírita precisa de rebaixar as outras para se exaltar; ela tem seus méritos próprios, que não foram conquistados à custa de nenhuma outra.

Mas tolerar ainda é mais do que isso. Também precisa exercitar sua tolerância aquele quq já teve oportunidade de desenvolver sua inteligência. E evidente que inteligência e cultura não são dádivas que caiam do céu por descuido — ao contrário, têm o seu preço e resultam de um lento estratificar de muitas e muitas encarnações. Um Mozart, que compõe aos cinco anos de idade, certamente não podia ter aprendido tudo aquilo em sessenta meses de vida física. E se, paralelamente ao nível intelectual já atingido, ele tiver também alcançado um alto plano moral, então ele não irá menosprezar o pobre sambista. Esse é o binômio da evolução: inteligência e moral devem igualar-se para equilibrar a equação da vida. Aqueles que alcançam sdto nível intelectual, mas têm atrofiado o senso moral, entregam-se a loucuras que lhes custarão séculos e até milênios de recuperação e reparo. Os que se moralizam logo, mas descuram do desenvolvimento da inteligência, estão incomparavelmente em posição melhor, mas, para colaborarem com verdadeira amplitude na obra imensa do Pai, é necessário que possam ter a serviço da sua moral a faculdade maravilhosa da inteligência. Inteligência — é ainda o dicionário que diz — é a faculdade de compreender, de conhecer, de interpretar. E como é que vamos pôr em prática os nossos recursos éticos se não temos ainda facilidade de compreensão, conhecimento e interpretação?

Não nos iludamos, entretanto: a inteligência traz em si um ônus tremendo ao espírito. Muito se pedirá a quem muito se deu, diz o Mestre. E verdade. A inteligência é um encargo, uma responsabilidade e confere certa autoridade. Encontramos a cada instante, em nosso comércio com o mundo invisível, Espíritos que nos trazem o depoimento amargo da sua aflição, por não terem sabido ou não terem querido utilizar como deviam a magnífica inteligência que já haviam desenvolvido. Há os que se deixaram levar apenas pela indolência, como aquele servo da parábola dos talentos que preferiu enterrar a moeda do seu senhor e devolvê-la tal como a recebeu. Há, porém, aqueles que usaram de todos os seus recursos intelectuais para espalhar ideias perniciosas, para levar grupos e povos inteiros à desavença, para pregar o culto da irresponsabilidade. Pagam depois um preço tão alto por essa atitude que melhor teria sido não possuírem ainda tão desenvolvida aquela faculdade superior.

Qualquer que seja, porém, o desenvolvimento moral da criatura inteligente, ela precisa olhar com tolerância aqueles de nós que ainda não alcançamos seu nível. O homem ou a mulher muito inteligente tendem a impacientar-se diante da morosidade com que o semelhante raciocina, da lentidão com que aprende, da dificuldade com que caminha nas trilhas da cultura. O espírito inteligente acha que todos os que o cercam são seres primários, pouco esclarecidos e pouco interessados na busca de novos horizontes. Muita vez não é isso que se passa: é que o espírito é apenas cauteloso — deseja ver primeiro o terreno em que pisa, porque traz, nos arquivos da sua memória, decepções que lhe custaram tão caro que não as pode esquecer...

Leitor inteligente, paciência, modéstia e, acima de tudo, tolerância. Nenhum de nós ainda se diplomou na escola da vida; se aqui estamos é porque não fomos ainda admitidos nessa imensa e desejada Universidade Cósmica dos Espíritos Superiores. Lá chegaremos um dia, sem dúvida, porque, graças a Deus, os que lá estão nos ajudam com a sua imensa dose de amor e de TOLERÂNCIA.

João Marcus

Hermínio C. Miranda
(Sob pseudônimo de João Marcus), do livro:
Candeias na noite escura

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