No nosso post de hoje, iremos nos aproximar desta “segunda natureza” do mestre lionês que se revela nas entrelinhas de seus textos sabiamente redigidos nas edições da Revista Espírita. Podemos assim dizer, com certeza, que foi essa forma dele perscrutar o até então espiritualmente inexplorado, que garantiu com que a Doutrina dos Espíritos alcançasse o sucesso que teve em sua época e chegasse intacta até nós nos dias atuais, muito embora com alguns de seus temas quase sem nenhuma divulgação, até mesmo no meio Espírita.
Um destes temas, diz respeito a evocação de Espíritos encarnados, devido, primeiramente, a questão de evocar os espíritos ter se tornado um “tabu”, algo proibitivo, nas reuniões mediúnicas das nossas Casas Espíritas; e depois – aí a coisa se complica ainda mais – por se tratar de evocação de espíritos de pessoas vivas. Portanto, é sobre isso que estaremos discutindo hoje…
A Perspectiva de Estudo
Os leitores e estudiosos da Revista Espírita (RE), sabem que Kardec pautava as suas observações e conclusões, sobre tudo que dizia respeito ao Espiritismo, com base em fatos reais, investigados por ele mesmo ou por outras fontes de pesquisas fidedignas. Mesmo assim, o que chegava até ele ficava sempre sobre a sua observação e/ou de seus pares da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas (SPEE), quando não eram devidamente compreendidas. Podemos afirmar hoje, sem nenhuma sombra de dúvidas, de que tudo que nos foi revelado pela Doutrina dos Espíritos, por intermédio da Espiritualidade Superior e demais Espíritos coadjuvantes, passou antes pelo crivo racional de Allan Kardec. Com o nosso tema de hoje não foi diferente…
Como será que a evocação de espíritos encarnados (EEE) surgiu para o mestre Kardec, se a Espiritualidade não lhe havia apresentado nada sobre esse assunto até 1861, muito embora tais experiências vinham sendo primeiramente apresentadas para ele desde 1858, e depois sendo experienciadas, sob a sua supervisão, entre os anos de 1859 e 1860? Você poderia então perguntar: baseado em quê, podemos afirmar isso? Diríamos que a resposta pode ser encontrada nas três primeiras publicações de Allan Kardec: a 1ª edição do Livro dos Espíritos (1857); Instruções Práticas Sobre as Manifestações Espíritas (1858); e o Livro dos Médiuns (1861). Senão vejamos.
A Primeira Edição do Livros dos Espíritos
Se pesquisarmos a obra original da primeira edição do Livro dos Espíritos (LE), publicada em abril de 1857, observaremos que a ideia da evocação de espíritos de pessoas vivas não aparece em nenhum momento ali. Nesta obra, somente conseguimos encontrar a seguinte instrução da Espiritualidade para Kardec:
Durante o sono o nosso espírito pode se comunicar com outros espíritos errantes [no Mundo Espiritual] ou encarnados em outros Mundos; mas também pode se comunicar com outros espíritos encarnados na Terra, que como ele, são livres. (KARDEC, A. [1], p. 75, q.163) (Grifo nosso)
Isto significa dizer, que a alma de um encarnado, por estar emancipada de seu corpo físico, pode sim se comunicar como outros Espíritos encarnados, tanto na Terra quanto em outros Mundos, mas a Espiritualidade não disse como…
Vale ainda ressaltar, que esta passagem se encontra no capitulo, cujo título é: Emancipação da Alma na Vida Corporal, apresentava em sua primeira edição, apenas dezoito questões (18), enquanto que na segunda, quase com o mesmo título, encontramos cinquenta e cinco (55), e, em nenhum deles, a nossa questão investigada aparece.
A Segunda Edição do Livros dos Espíritos
Já na segunda edição do LE, publicada em 1860, o tema espiritual apresentado acima (emancipação da alma), foi desdobrado em todo o capítulo VIII do segundo livro; mas, mesmo aí, como dissemos, não havia referência nenhuma sobre a evocação de espíritos de pessoas vivas. Isso nos levou a concluir que esta ideia partiu mesmo de Kardec, como veremos a seguir. Vale enfatizar, que embora não esteja formulada claramente como evocação de Espíritos encarnados, a ideia da EEE, aparece, “como semente”, inserida no tópico 455, do capítulo VIII da segunda edição do LE, cujo o título é: Resumo Teórico do Sonambulismo, do Estase e da Dupla Vista.
Acreditamos, com base neste seu resumo teórico, Kardec já cogitava, desde 1858 (como veremos adiante), na possibilidade de se utilizar o sonambulismo magnético (artificial) – que ele bem conhecia –, como ferramenta de evocação de espíritos encarnados, quando apresentaria, dois anos mais tarde, na 2ª edição da LE, a seguinte afirmação: “(…). No estado de desprendimento em que se encontra o Espírito do sonâmbulo, entra ele em comunicação mais fácil com os outros Espíritos encarnados ou não”. (KARDEC, A. [2], p. 178) (Grifo nosso)
Nesse meio tempo, vamos encontrar uma outra fonte de informação publicada no início de 1858 que nos apresenta alguns dados muito interessantes para as nossas conclusões…
Instruções Práticas Sobre as Manifestações Espíritas
No início de 1858, Kardec publicou um manual de instruções, contendo também verbetes espíritas, intitulado: Instruções Práticas Sobre as Manifestações Espíritas [3], instruções estas que seriam ampliadas em outro livro que não só completou, como sucedeu esta obra: O Livro dos Médiuns, lançado em janeiro de 1861.
Neste livro, muito pouco divulgado dentro da Seara Espírita, vamos encontrar algumas informações relevantes, porém resumidas, que só seriam desdobradas três anos mais tarde. O interessante (lembre-se que estamos em 1858), é que nesta pequena brochura, encontramos as seguintes instruções, na página 84 [3]:
O Espírito ao ser evocado, se encontrando ainda encarnado, responderá como um espírito e não como homem; frequentemente as suas ideias não serão as mesmas; se a emancipação da alma ocorre quase sempre durante o sono, algo similar, como o sonambulismo ou um entorpecimento dos sentidos acompanhado por uma catalepsia temporária se apresentará ao no corpo físico do Espírito evocado; este, por sua vez, não pode estar debilitado ou doente quando se predispõe a tais experiências, porque o mal poderia se agravar. Estas advertências foram apresentadas logo no início de 1858, portanto, Kardec já sabia da possibilidade de se evocar pessoas vivas…
Observação: Embora o livro Instruções Práticas sobre as Manifestações Espíritas tenha sido traduzido, pela primeira vez, para o português somente em 1923 por Caibar Schutel, se pesquisarmos o texto original, as mesmas informações expostas acima se encontram lá…
Portanto, mesmo não se apresentando como uma instrução revelada pela Espiritualidade, concluímos, portanto, que Allan Kardec provavelmente já conhecia a possibilidade da EEE antes de 1858 e, a partir daí, pode constatar experimentalmente a veracidade das afirmações sobre estas evocações nos três anos seguintes. É o que veremos a partir de agora…
As Primeiras Vivências de EEPV relatadas na RE
Na edição da RE de maio de 1858, Kardec, como sempre, nos dá uma amostra de seu bom senso, ao apresentar duas palestras ditadas pelo Espírito Mozart que um dos assinantes da revista havia lhe enviado. Em uma delas observamos – na décima segunda pergunta – que o interlocutor (que não era Kardec) faz a seguinte indagação ao Espírito evocado:
Poderia o médium pôr-se em relação com a alma de uma pessoa viva? Em que condições?R. Facilmente, se a pessoa estiver adormecida. (Kardec, A. [3] RE, p. 168) (Grifo nosso).
Logo abaixo observamos uma anotação interessante do próprio Kardec feita no rodapé da página 168:
Se uma pessoa viva for evocada em estado de vigília, pode adormecer no momento da evocação ou, pelo menos, sofrer um entorpecimento e uma suspensão das faculdades sensitivas. Muitas vezes, entretanto, a evocação nada produz, sobretudo se não for feita com intenção séria e benevolente.
Isto confirma a nossa afirmação que Kardec já sabia, naquela ocasião, que a evocação de Espíritos de pessoas vivas era possível de ser realizada…
Mas, é de setembro deste mesmo ano (1858) que vem um exemplo muito mais marcante envolvendo a EEE.
Ao discorrer – na edição da RE do referido mês – sobre a questão do fenômeno de bicorporeidade, o mestre lionês nos conta que um dos membros da Sociedade Parisiense de Estudo Espíritas (SPEE), lhe havia relatado que o filho havia sido magnetizado pelo seu próprio guia, que desdobrado, foi em Espírito de Paris para Londres; se materializou para os seus amigos que estavam lá; e que um deles, mais tarde, havia lhe enviado uma carta contando o que havia se passado enquanto ele se encontrava na cidade. Desnecessário dizer que o jovem médium não se lembrou de nada ao despertar. Kardec conclui se tratar realmente de um fenômeno de bicorporiedade (*), mas que também pode ser entendido como sendo uma “auto”- evocação de Espírito de pessoas vivas, onde o evocador é o próprio guia espiritual do médium…
(*) Quem fazia muito isso aqui no Brasil, era o nosso saudoso professor e médium Eurípedes Barsanulfo…
Mas, até aqui os exemplos de EEE são frutos de relatos de outras pessoas. Vamos agora avaliar as experiências realizadas pelo próprio Kardec…
A Primeira Experiência EEE de Kardec relatada na RE
Em 23 de novembro de 1859, na sessão geral da SPEE, Allan Kardec nos relata na RE daquele mesmo mês, que o Conde de R…, havia lhe enviado uma carta se colocando à disposição da Sociedade para a realização da primeira experiência de EEE. O mestre vai ocultar, desta vez por razões pessoais, a identidade deste personagem.
Como o objeto de nosso estudo não é descrever o processo e sim constatar a sua realização como constructo teórico, convidamos você, caro leitor, a ler o relato desta primeira interessante experiência intitulada: O Espírito de um lado e o corpo do outro: Conversa com o Espírito de uma Pessoa Viva, publicada na Revista Espírita de janeiro de 1860. O experimento tanto foi um sucesso, que menos de dois meses depois, o mestre lionês realizou a sua segunda experiência. Acreditamos que as constatações e as diretrizes para as futuras EEPV´s que seriam realizadas mais tarde, foram resultantes desta e da próxima experiência apresentada a seguir.
A Segunda Experiência EEE de Kardec
Menos de dois meses depois da primeira experiência, Kardec recebeu outra carta, desta vez do Dr. Vignal, também membro titular da Sociedade, se oferendo para servir de estudo para as citadas evocações. Embora o relato da experiência não apresente detalhes esclarecedores sobre o novo personagem, enquanto encarnado, a não ser que ele era médico e morava em Souilly (a 250 Km de Paris). Todavia, enquanto pesquisávamos para elaborar este post, nos deparamos com uma publicação da Fundação Espírita André Luiz [5], fazendo referência sobre uma comunicação mediúnica do Espírito do Dr. Vignal para Kardec, datada de maio de 1865, quando este se encontrava enfermo.
Entretanto, o site da FEAL não só apresentava a mensagem mediúnica original do Espírito Vignal, como também fazia referência ao livro Nem Céu Nem Inferno, dos pesquisadores Paulo Henrique de Figueiredo e Lucas Sampaio. Consultando este livro em nossa biblioteca, constatamos que um dos médicos espirituais que auxiliou Kardec em sua convalescência, havia sido este Espírito.
Fato interessante: ambas as mensagens do Espírito Vignal, tanto a de 1865 quanto a de 1868, foram recebidas pelo mesmo médium: Sr. Armand Theodore Desliens. Arriscaríamos até dizer, que se comparássemos o original da primeira comunicação mediúnica (de 1865) deste Espírito para Kardec, talvez pudéssemos concluir serem ambas dele mesmo, devido a caligrafia rebuscada como escreveu a palavra maio, na datação do cabeçalho da comunicação apresentada pela Feal.
Convidamos, portanto, você, caro leitor, a ler também este segundo artigo intitulado: Estudo sobre o Espírito de pessoas Vivas, publicado na RE de março de 1860, pois ele apresenta informações que não só confirmam os resultados da primeira experiência realizada com o Conde R…, mas nos traz outras que, como dissemos acima, fundamentaram tudo que Kardec apresentou no Livro dos Médiuns sobre este assunto.
Observação: Vale também a pena ler, na RE de maio de 1865, a comunicação que o Dr. Vignal, já desencarnado, apresentou a Kardec.
Conclusões Parciais
De tudo apresentado até aqui, podemos concluir que os estudos e suas respectivas conclusões em torno das evocações de pessoas vivas, foi realmente desenvolvido por Allan Kardec. Com a sua argucia e com a sua determinação em sondar o desconhecido, o mestre lionês, nos deixou um legado que infelizmente estamos desprezando por não darmos continuidade. Por que estamos afirmando isso? Porque ainda existe uma lacuna a ser preenchida nestas experiências.
Se prestarmos atenção, Kardec não nos revela nada sobre o que aconteceu com seus dois amigos, ao retornarem para seus corpos. Mesmo sabendo que eles não poderiam lhe revelar conscientemente nada, devido à natureza do sonambulismo magnético sobre as vivências pelas quais passaram, o mestre contava com ajuda da Espiritualidade, principalmente a de São Luís, para lhe dar mais informações sobre as EEE. Por que será que não fez? Será porque essa é uma prática que poderíamos dar continuidade, desenvolvendo tais experimentos, com segurança, em nossas Casas Espíritas?
Resumindo: temos as orientações de Kardec; cada Casa Espírita tem os seus dirigentes e mentores espirituais, prontos para auxiliarem; certamente existem muitos médiuns sonambúlicos aguardando a ocasião para darem suas contribuições. Então o quê será que ainda nos falta para darmos continuidade a Obra da Espiritualidade Maior?
Saúde e Paz!
Referências
[1] KARDEC, A. Livro dos Espíritos – Edição Bilíngue. Trad. Canuto de Abreu. Editora Ismael. 1957. São Paulo. SP.
[2] __________. Livro dos Espíritos. Trad. J. Herculano Pires. LAKE, 60ª ed. 1999. São Paulo. SP.
[3] _________ . Instruções Práticas Sobre as Manifestações Espíritas. Trad. Júlio de Abreu Filho. Editora Pensamento. 1ª ed. 1995. SP
[4] __________ . Revista Espírita, mar., 1858.Trad. Júlio Abreu Filho. EDICEL. 6ª ed. 2020. SP.
[5] Link Portal do Espírito – FEAL: Consultado em 19/12/202.
Fonte: pesquisasespiritas.blog.br