Trata-se de uma constante, em nossa vida, a busca de alegria, de satisfação íntima e de realizações em seus mais variados aspectos.
É fato para a grande maioria das pessoas que, quando elas se encontram unicamente empenhadas nas próprias buscas, não percebem que aqueles que com elas convivem podem estar enfrentando dificuldades muito mais intensas que as suas. Sendo assim, deixam de amparar o semelhante, visto acreditarem que, somente com a solução de seus desafios, é que se tornarão aptas para acudir o outro.
O comportamento caridoso não é algo espontâneo e natural em muitos de nós. Sê-lo, em determinadas circunstâncias, ainda nos causa um certo desconforto. E quantas são as desculpas que produzimos para não nos envolvermos com o próximo! É a falta de tempo, de recursos financeiros, de jeito... Por outro lado, quantas são as situações em que nos cobramos uma atitude de maior solicitude! Quantas são as atenções que dispensamos, justamente para abrandar nossas cobranças íntimas!
O Espírito Hammed ressalta:
Muitas vezes, “doamos coisas” ou “favorecemos criaturas” a fim de proporcionar a nós mesmos, temporariamente, uma sensação de bem-estar, de poder íntimo ou de vaidade pessoal. [1]
Mas Jesus ensinou que, no ato de oferecimento, o que vale são as motivações e intenções que geram tal comportamento. Temos, então, o clássico exemplo da oferta da viúva pobre. (Mc 12:41-44)
Ela, ao colocar apenas duas moedas no gazofilácio (local reservado nos templos às oferendas) – diferentemente de outros que lá haviam colocado grandes quantias – fez com que o Cristo pronunciasse as seguintes palavras aos seus discípulos:
Em verdade vos digo que esta viúva pobre depositou no gazofilácio mais do que fizeram todos os ofertantes. Porque todos eles ofertaram do que lhes sobrava; ela, porém, da sua pobreza deu tudo quanto possuía, todo o seu sustento. [2]
Para muitos indivíduos, a caridade consiste, basicamente, em doar aquilo que não lhes tem mais serventia e utilidade, acreditando que esse gesto seja o suficiente para caracterizá-los como pessoas caridosas.
Entretanto, a caridade é uma disposição íntima ativa e dinâmica, que se manifesta das mais variadas formas: em pensamentos de bondade, em conselhos úteis, em alimento e recursos na hora certa, em força que reanima...
Tanto assim é, que o léxico traz como sua definição: “disposição favorável em relação a alguém em situação de inferioridade (física, moral, social etc.); compaixão, benevolência, piedade.” [3]
O autêntico comportamento caridoso é aquele que não espera ou exige reconhecimento, gratidão ou qualquer tipo de recompensa. E é justamente esse desapego dos resultados que caracteriza o indivíduo caridoso, pois ele se disponibiliza ao outro pela simples satisfação que isso lhe proporciona.
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O Espírito Cairbar Schutel ensina:
A caridade pressupõe necessariamente convívio. Afinal, caridade não é somente destinar verbas às obras filantrópicas, mas sim participar da vida em família, dos problemas dos semelhantes, das dificuldades dos necessitados, abrindo o coração para o mundo. [4]
O ser humano vive em comunidade. Portanto, faz parte da caridade a criatura ser integrada ao meio social em que se encontre.
Sem dúvida, a doação de alimentos, de roupas, de medicamentos e de quantias financeiras são valiosos recursos para os que sofrem e se encontram em dificuldades. E pelo fato de essas doações serem portadoras de mensagens de socorro, de esperança, de alívio e conforto, muitas pessoas conseguem recuperar a própria dignidade, encontrando, assim, motivações para continuar acreditando e vivendo.
Mas, perante os postulados espíritas, podemos afirmar que as doações de natureza material, muito embora importantíssimas em situações variadas, representam tão somente a caridade em suas primeiras manifestações. Com o Espiritismo, a caridade abarca outros aspectos e opções, ampliando suas possibilidades.
Na questão 886, de O Livro dos Espíritos, temos:
“Qual o verdadeiro sentido da palavra caridade, como entendia Jesus”? [5]
Resposta:
“Benevolência para com todos, indulgência para com as imperfeições alheias, perdão das ofensas. A caridade, segundo Jesus, não está restrita à esmola. Ela abrange todas as relações que temos com os nossos semelhantes, quer sejam nossos inferiores, nossos iguais ou superiores. Ela nos ordena a indulgência porque nós mesmos temos necessidade dela.”
Ser benevolente é ter boa vontade para com os outros. É se deixar guiar pela amabilidade, pela generosidade e solidariedade, pelo interesse para com o bem-estar do outro, indistintamente.
Como haver caridade sem boa vontade? Ou, segundo o próprio dicionário, sem essa “disposição favorável em relação a alguém”, principalmente quando ele se encontra em dificuldades?
Porém, nesta mesma definição, caridade é sinônimo de piedade. E segundo o entendimento do Espírito Michel:
O sentimento mais próprio para vos fazer progredir, domando vosso egoísmo e vosso orgulho, o que dispõe vossa alma à humildade, à beneficência e ao amor ao próximo é a piedade! Essa piedade que vos comove até as entranhas, diante dos sofrimentos dos vossos irmãos, que vos faz lhes estender mão segura e vos arranca lágrimas de simpatia. [6]
Cada comportamento de benevolência tem a possibilidade de nos preencher com pensamentos nobres e sentimentos de compaixão e piedade.
No entanto, o Espírito Joanna de Ângelis define a benevolência como “um sentimento de profundo amor pelo seu próximo, de compreensão pelos seus atos.” [7]
E é neste ponto que podemos destacar a indulgência: capacidade de aceitar e tolerar as atitudes alheias, julgando com bem menos severidade seus erros e equívocos. Mas isso se trata da caridade mais difícil de ser praticada, a caridade moral, porque simplesmente não sabemos lidar com as imperfeições alheias, compreendendo-as!
O Espírito Irmã Rosália enfatiza:
A caridade moral consiste em se suportar uns aos outros. (...) Há um grande mérito, crede-me, em saber se calar para deixar falar um mais tolo; e ainda aí está um gênero de caridade. Saber ser surdo quando uma palavra de zombaria escapa de uma boca habituada a escarnecer; não ver o sorriso de desdém que acolhe a vossa entrada entre pessoas que, frequentemente, erradamente, se creem acima de vós, enquanto que, na vida espírita, a única real, estão algumas vezes bem longe disso; eis um mérito, não de humildade, mas de caridade; porque não anotar os erros de outrem é caridade moral. [8]
E o por quê de nossa dificuldade perante os defeitos alheios? Simplesmente, porque não sabemos entender e trabalhar nossas próprias deficiências!
Quando alguma situação nos exige o exercício dessa tolerância, a reação mais comum é nos aferrarmos aos próprios conceitos, concepções e melindres. Porém, quando nos conscientizamos do esforço que precisamos empreender para superar nossas limitações, nos habilitamos à compreensão da luta alheia. Quando nos percebemos na condição de aprendizes da vida, constatamos que o outro também o é.
Por fim, o terceiro aspecto da caridade na definição espírita: o perdão.
Trata-se de um ponto delicadíssimo, porque a maioria de nós ainda não consegue elaborar de maneira eficiente o próprio orgulho ferido. Por isso é que se diz que “perdoar é libertar-se”, ou seja, desvincular-se da raiva e do ressentimento que mentalmente nos prendem ao outro.
Como nos pautarmos pela caridade, guardando mágoa no coração? No entanto, é comum atuarmos em algum tipo de assistência social, ajudar, colaborar, mas não conseguir relevar uma ofensa recebida.
A caridade do perdão é uma atitude que posiciona a pessoa que assim se comporta acima da média da sociedade contemporânea. É isso o que enfatiza Joanna de Ângelis:
O perdão, por sua vez, é o auge das conquistas íntimas que desidentificam o ser das próprias imperfeições, porque se dá conta do quanto necessita ser perdoado, naquilo que se refere às próprias fraquezas e delitos que tem cometido. [9]
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A caridade é tão fundamental para o ser humano, que ela é uma das leis de Deus para a evolução das criaturas. Não foi sem razão que os Espíritos Superiores ensinaram que “fora da caridade não há salvação”. [10]
Como salvar-se, sem o trabalho construtivo no bem? Como poderíamos evoluir sozinhos, sem o próximo?
Os homens precisam uns dos outros para aprenderem juntos, para trocarem afetos, para se auxiliarem mutuamente. Sem a caridade, ocorreria a frieza, a indiferença, enfim, o intensificar das dores e problemas humanos.
Existe um pensamento que diz: “As mãos que oferecem flores ficam perfumadas”. Assim é a vida: ela sempre responde com o que fazemos. Praticando o bem, teremos o bem a nosso favor; amando, teremos o amor ampliado dentro de nós.
Desarme do ego
“Senhor, quando foi que te vimos com fome, com sede, forasteiro, nu, enfermo ou preso, e não te assistimos? Então lhes responderá: em verdade vos digo que sempre que o deixastes de fazer a um destes mais pequeninos, a mim o deixastes de fazer.” Mateus, 25:44 e 45.
A palavra salvação, colocada por Allan Kardec, como título do capítulo XV de O Evangelho Segundo o Espiritismo, merece uma interpretação adequada ao que queremos demonstrar, pois ela tem um sentido mais psicológico que religioso. Salvar-se não se refere, necessariamente, a uma ameaça externa, nem tampouco a uma atitude para com o semelhante. Não há ameaça grave nem abismo a que o ser humano esteja ameaçado de cair, muito menos um inimigo contra o qual deva se precaver sob pena de perder a Vida. A salvação compreende a adoção de um estado de consciência que disponibilize a mente para a captação do mundo como ele se apresenta, isto é, sem os filtros impeditivos das defesas do ego. Salvar-se é predispor-se a viver a Vida sentindo suas conseqüências com maturidade e equilíbrio, quaisquer que sejam elas.
A salvação diz respeito a uma mudança de atitude psíquica. Trata-se de estabelecer um estado de espírito que possibilite a apreensão das leis de Deus sem os medos e os receios impregnados nos mecanismos de defesa que normalmente o ser humano adota frente à Vida e perante aquilo que desconhece.
(...) Por outro lado, a afirmação de que fora da caridade não há salvação supõe que não existe outro estado possível. É determinante que se aja daquela forma sem a qual não se alcança o que se pretende. Nesse sentido, a caridade não é tão somente uma atitude externa ou um ato isolado. É também um estado de espírito, uma atitude psíquica. Uma predispõe à outra atitude mais elevada.
A caridade é um meio, como uma ponte que nos leva de um lugar a outro, sem os perigos de se cair no abismo. Não se trata de uma atividade externa, como um compromisso social ou uma regra decorrente de um preceito religioso. Pode-se até iniciar-se a compreensão de seu significado pela prática externa, mas isso não garante alcançar seu sentido real. O exercício da caridade, como de qualquer atividade humana, leva à consolidação de seu sentido oculto. Em paralelo à prática, deverá ocorrer a internalização da mensagem significante, intrínseca à experiência.
Num sentido psicológico, a caridade elimina as projeções, pois me possibilita enxergar o outro naquilo em que ele necessita e não no que desloco de minha personalidade e projeto nele. Doar algo a alguém é desprender-se de si mesmo vendo o outro como ele é. É não projetar sua sombra no outro. Ela, a caridade, leva o indivíduo a sair de si e a perceber o outro no momento evolutivo em que se encontra, permitindo que aquele que a exerce saia dos limites de seu ego e vá na direção do Self próprio e do outro.
Esse deslocamento na direção do outro não se trata apenas de uma ação, mas, principalmente, de um sentimento; um estado de ser interior, de sentido de desprendimento.
(...) Praticar a caridade pode ser apenas estar caridoso, isto é, realizar uma tarefa como outra qualquer. Quando se trata de um estado de espírito, o indivíduo écaridoso, isto é, trata-se de um traço de sua personalidade. Passar de um estado a outro requer, além de outros aspectos, conhecimento de si mesmo.
(...) A atitude caridosa que atende somente a regras externas atua de modo contrário, ou seja, inflacionando o ego com sentimentos de vaidade e orgulho. Por mais que ajude o outro, a caridade aparente pode funcionar como um disfarce para a satisfação dos desejos de reconhecimento e destaque daquele que a pratica. Por outro lado, ser caridoso para com os demais pode significar uma fuga das próprias questões, de modo a não entrar em contato com sua sombra, evitando curar-se a si mesmo.
O sentimento de caridade, complementado pela ação caridosa, diminui o poder do ego estimulando o processo de desenvolvimento espiritual. Psiquicamente, o indivíduo consegue melhor elaborar seus conteúdos inconscientes bem como aqueles conscientes que impedem a percepção de si mesmo. Esse sentimento provém do Espírito e se torna consciente com o exercício constante e persistente da ação caridosa.
(...) As relações sociais naturalmente geram tensões, disputas e diferenças, colocando o ser humano em constante embate entre sua individualidade e as exigências do mundo. Ora ele afirma sua individualidade, ora ele busca sua identidade com o grupo social de que faz parte. O alívio dessas tensões significa o encontro consigo mesmo e a paz com o mundo. A caridade proporciona a necessária identidade com o mundo por trazer consigo a empatia nas relações com o próximo. Ela permite a identidade com o semelhante de tal forma que o indivíduo se sente uno com o outro, igualando-se a ele na sua necessidade. Psiquicamente diminui as barreiras que provocam tensões e elimina as vaidades do ego, aproximando as pessoas umas das outras.
Estar em paz é garantia para o equilíbrio psíquico, previne os acessos abruptos do inconsciente e inibe as obsessões. Nesse estado, o indivíduo entra em contato com os Bons Espíritos, favorecendo sua motivação para viver. Semelhante estado se alcança com a vivência da caridade. Ela promove o bem estar psíquico preparando a mente para vencer as investidas persistentes dos conflitos oriundos das vidas passadas enraizados no inconsciente. A “fina camada” que separa a vida consciente da inconsciente, onde se encontram as experiências esquecidas da atual encarnação e das vidas anteriores, permite a passagem, para o aprendizado do Espírito, dos complexos afetivos oriundos de antigas situações dolorosas. Essa influência constante do passado sobre o presente é amenizada pelo sentimento de caridade, que age como um filtro, atenuando os efeitos sobre a vida consciente.
A ação da caridade sobre o próximo é uma terapia fundamentada no amor que atinge principalmente aquele que a executa. [11]
Silvia Helena Visnadi Pessenda
REFERÊNCIAS
[1] HAMMED (espírito); SANTO NETO, Francisco do Espírito (psicografado por).Renovando Atitudes. 2. ed. Catanduva, SP: Boa Nova Editora. 1997. p. 207
[2] BÍBLIA. Português. Bíblia de Estudo Almeida. Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 1999.
[3] MICHAELIS: moderno dicionário da língua portuguesa. São Paulo: Companhia Melhoramentos, 1998.
[4] SCHUTEL, Cairbar (espírito); GLASER, Abel (psicografado por). Fundamentos da reforma íntima. 3. ed. Matão: Casa Editora O Clarim, 2000. Cap. “Caridade e isolamento”. Item 870. p. 153.
[5] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Tradução de Salvador Gentile, revisão de Elias Barbosa. 100. ed. Araras, SP: IDE, 1996.
[6] KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. Tradução de Salvador Gentile, revisão de Elias Barbosa. 195. ed. Araras, SP: IDE, 1996. Cap. XIII. Item 17.
[7] ÂNGELIS, Joanna de (espírito); FRANCO, Divaldo Pereira (psicografado por). Diretrizes para o êxito. 2. ed. Salvador, BA: Livr. Espírita Alvorada, 2004. Cap. 3. p. 27.
[8] KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. Tradução de Salvador Gentile, revisão de Elias Barbosa. 195. ed. Araras, SP: IDE, 1996. Cap. XIII. Item 9.
[9] ÂNGELIS, Joanna de (espírito); FRANCO, Divaldo Pereira (psicografado por). Diretrizes para o êxito. 2. ed. Salvador, BA: Livr. Espírita Alvorada, 2004. Cap. 3. p. 27. Cap. 3. p. 27.
[10] KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. Tradução de Salvador Gentile, revisão de Elias Barbosa. 195. ed. Araras, SP: IDE, 1996. Cap. XV.
[11] NOVAES, Adenáuer Marcos Ferraz de. Psicologia do Evangelho. 2. ed. Salvador, BA: Fundação Lar Harmonia, 2001. Cap. 15.
CAMARGO, Jason de. Educação dos sentimentos. 5. ed. Porto Alegre: Letras de Luz, 2003.
DE LUCCA, José Carlos. Sem Medo de ser Feliz. 1. ed. São Paulo: Petit, 1999.