A lei de conservação obriga o homem a prover às necessidades do corpo, porque, sem força e saúde, impossível é o trabalho.
É natural o desejo do bem-estar. Deus só proíbe o abuso, por ser contrário à conservação. Ele não condena a procura do bem-estar, desde que não seja conseguido à custa de outrem e não venha a diminuir-vos nem as forças físicas, nem as forças morais.
Existem privações voluntárias que são meritórias, como a privação dos gozos inúteis, porque desprende da matéria o homem e lhe eleva a alma. Meritório é resistir à tentação que arrasta ao excesso ou ao gozo das coisas inúteis; é o homem tirar do que lhe é necessário para dar aos que carecem do bastante. Se a privação não passar de simulacro, será uma irrisão. Fazendo o bem aos nossos semelhantes mais mérito teremos.
Para sabermos se é meritória, de algum ponto de vista, a vida de mortificações ascéticas, que desde a mais remota antiguidade teve praticantes no seio de diversos povos, devemos procurar saber a quem ela aproveita e teremos a resposta. Se somente serve para quem a pratica e o impede de fazer o bem, é egoísmo, seja qual for o pretexto com que entendam de colori-la. Privar-se a si mesmo e trabalhar para os outros, tal a verdadeira mortificação, segundo a caridade cristã.
A abstenção de certos alimentos, prescrita na tradição de diversos povos, não é exatamente racional, pois é permitido ao homem alimentar-se de tudo o que lhe não prejudique a saúde. Alguns legisladores, porém, com um fim útil, entenderam de interdizer o uso de certos alimentos e, para maior autoridade imprimirem às suas leis, apresentaram-nas como emanadas de Deus.
A alimentação animal não é, com relação ao homem, contrária à lei da natureza, pois dada a nossa constituição física, a carne alimenta a carne; do contrário, debilita-se o homem. A lei de conservação nos prescreve, como um dever, que mantenhamos as nossas forças e a nossa saúde, para cumprir a lei do trabalho. O homem deve, pois, alimentar-se de acordo com as exigências de seu organismo.
É meritório abster-se o homem da alimentação animal, ou de outra qualquer, por expiação, se praticar essa privação em benefício dos outros. Aos olhos de Deus, porém, só há mortificação se houver privação séria e útil. Por isso é que se qualifica de hipócritas os que apenas aparentemente se privam de alguma coisa.
Sobre as mutilações operadas no corpo do homem ou dos animais, temos que pensar a que propósito é feito. Devemos inquirir sempre nós mesmos se é útil aquilo de que porventura se trate. A Deus não pode agradar o que seja inútil e o que for nocivo lhe será sempre desagradável. Deus só é sensível aos sentimentos que elevam para ele a alma. Obedecendo-lhe à lei e não a violando é que poderemos forrar-nos ao jugo da nossa matéria terrestre.
Os sofrimentos naturais são os únicos que elevam, porque vêm de Deus. Os sofrimentos voluntários de nada servem, quando não concorrem para o bem dos outros. Os que pensam que se adiantam no caminho do progresso por abreviarem a vida, mediante rigores sobre-humanos, estão errados. Por que de preferência não trabalham pelo bem de seus semelhantes? Vistam o indigente; consolem o que chora; trabalhem pelo que está enfermo; sofram privações para alívio dos infelizes e então suas vidas serão úteis e agradáveis a Deus. Sofrer alguém voluntariamente, apenas por seu próprio bem, é egoísmo; sofrer pelos outros é caridade: tais os preceitos do Cristo.
Não devemos criar sofrimentos voluntários que nenhuma utilidade tenham para outrem, devemos, sim, cuidar de preservar-nos dos que prevemos ou nos ameaçam. Contra os perigos e os sofrimentos é que o instinto de conservação foi dado a todos os seres.
Fustiguemos o nosso espírito e não o nosso corpo, modifiquemos o nosso orgulho, sufoquemos o nosso egoísmo, que se assemelha a uma serpente a nos roer o coração, e faremos muito mais pelo nosso adiantamento do que infligindo-nos rigores que já não são deste século.
Referências:
O Livro dos Espíritos - Terceira Parte - Cap. V - Allan Kardec.